Franklin Albuquerque*
No último dia 12, segunda-feira, o Supremo Tribunal Federal deu posse a sua segunda presidente mulher desde a sua regulação pelo Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890.
Cármen Lúcia Antunes Rocha, tem 62 anos de idade, é natural de Montes Claros, cidade do norte do Estado de Minas Gerais, hoje com cerca de 500 mil habitantes. Passou a ocupar a cadeira de ministra de nossa Suprema Corte em 2006, quando foi indicada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, tornando-se a segunda mulher a ocupar esta vaga, após a ministra Ellen Gracie Northfleet, esta que também ocupou a Presidência no biênio 2006-2008.
Os discursos proferidos pelas autoridades na cerimônia de posse, da agora presidente do STF, chamaram a atenção por terem sido eivados de frases de efeitos, sobretudo, referindo-se à corrupção que há muito tempo assola a política brasileira e que nos últimos anos foi evidenciada através das investigações que levaram para cadeia alguns dos políticos e empresários mais poderosos e influentes do país e deixaram de sobreaviso tantos outros.
Bom, discursos políticos já não são mais novidade na maior Corte de nosso País. Costumeiramente, os votos e decisões excedem a fronteira da discussão técnica e jurídica para proferir “falas” que não dizem das ciências jurídicas e acabam por virarem manchetes de jornais sobrepondo-se, muitas vezes, a importância do caso em concreto. Um exemplo disso ocorreu justamente no voto da agora ministra-presidente no caso da manutenção da prisão do, à época, senador da República, Delcídio do Amaral, este posteriormente cassado pelos seus pares no Senado Federal:
“Na história recente de nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós brasileiros acreditou no mote de que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a ação penal 470 (mensalão) e descobrimos que o cinismo venceu a esperança. E agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. Quero avisar que o crime não vencerá a Justiça. A decepção não pode vencer a vontade de acertar no espaço público. Não se confunde imunidade com impunidade. A Constituição não permite a impunidade a quem quer que seja”.
Esta fala da emitente ministra foi tão emblemática que os principais veículos de comunicação de nosso País esqueceram que se tratava do caso inédito de prisão de um senador da República em pleno exercício do cargo e passaram a estampar apenas os trechos mais políticos (ou polêmicos) do voto e, por conseguinte, negligenciar os fatos, pressupostos e, principalmente, os fundamentos jurídicos que justificaram a prisão.
O que temo em observar é que a maior instância do Poder Judiciário deixe de ser mais técnica-jurídica para se tornar uma casa de decisões mais políticas, assim como são as duas que compõem o Poder Legislativo, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Obviamente, nesta reflexão, não podemos deixar de pontuar que, em nossa República, a escolha final de quem ascenderá à mais alta Corte do País é do presidente, portanto, uma escolha em grande parte política.
Mas, o que infelizmente pareceu mais irônico é que entre as principais autoridades que acompanharam a cerimônia do dia 12 de setembro e, assim, os discursos anticorrupção na política, estavam o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, o Ex-presidente da República, José Sarney, ambos envolvidos em sérias denúncias de corrupção e o ex-presidente Lula, que, como já mencionado, foi exatamente quem escolheu e nomeou a então professora de direito constitucional da PUC-MG e mais outros dois ministros da atual composição do Supremo. Este mesmo ex-presidente que após alcançar a marca histórica de mais de 80% de aprovação pela população brasileira e o respeito de toda comunidade política internacional, hoje é denunciado e submerso em toda sorte de acusações de corrupção, em praticamente todas as facetas que a legislação vigente prevê. O ex-presidente Lula nunca antes tinha comparecido a posse de qualquer presidente do STF, desde que deixou a Presidência, mas, nesta ele esteve e ainda aplaudiu bastante.
Para aumentar o nível de ironia, obviamente compareceu também o atual presidente da República, Michel Miguel Elias Temer. Este que além de ter ascendido à titularidade de seu cargo através de um processo que recebe sérios questionamentos sobre sua legalidade, moralidade, bem como sobre legitimidade de seus interesses, o atual chefe do Executivo Federal também tem contra ele quase uma infinidade de acusações por corrupção já correndo na Justiça brasileira. O presidente Michel Temer, além de aplaudir, pôde ouvir todas as críticas aos políticos brasileiros do privilegiado dispositivo principal do ilustre evento, sentado exatamente ao lado da nova presidente.
Bom, além das singulares circunstâncias e “interessada” plateia, os discursos que saudaram a excelentíssima presidente daquela Casa de Leis, seus conteúdos apresentaram particularidades que merecem um “olhar” mais profundo.
Inicialmente, percebe-se, nessas falas, um caráter extremamente “salvacionista” associada ao Poder Judiciário, sobretudo no discurso do decano Celso de Mello, e, em especial, àquela Corte. O que parece é que o Poder Judiciário finalmente alcançou o status de “Poder Moderador”, assim como desejou Dom Pedro I, pois, a esse cabe a palavra final do que é certo e o que é errado, ao que parece, não só no mundo jurídico, mas também no político. Nesse contexto, podemos observar, de imediato três grandes perigos:
Ora, discursos políticos, em geral, já sofrem grandes chances de mostrarem-se demagogos. Esse risco aumenta ainda mais quando vem de quem – ou de onde – deveria se posicionar de forma técnica; Segundo, depositar tantas expectativas em uma instituição ou até mesmo em um único personagem é esquecer que tanto as pessoas como as instituições são feitas também de imperfeições, de falhas e de ações dissonantes.
Não podemos esperar uma atuação perfeita de nenhum profissional, nem mesmo de um magistrado, mesmo sendo ele o presidente da mais Alta Corte do País. Nem tampouco de uma instituição que é formada por pensamentos e posicionamentos antagônicos, como todas são e como é natural ser. Ainda mais se tratando de instituições de nossa tão jovem e cheia de contradições democracia.
O terceiro, e talvez mais sensível de debater, perigo encontrado é o maniqueísmo do discurso. Das entrelinhas das falas que agradaram a imprensa e certamente aos ouvidos mais ávidos pela punição dos políticos corruptos, não é difícil depreender determinadas conclusões, tais como: “tem corrupção na política, no judiciário não”. Ora, falou-se em punir políticos, mas não de punir juízes corruptos, ou estes não existem? E quanto aos policiais, auditores, promotores e procuradores, etc? Qual o motivo de deixar de fora outros agentes públicos? Só existe corrupção praticada no Brasil por aqueles que foram eleitos? Um político que desvia recursos do Sistema Único de Saúde é corrupto e um médico que na hora de seu plantão no posto de saúde está prestando consulta em seu consultório particular não? Um político que realiza campanha com “caixa dois” é corrupto e um juiz que recebe propina para expedir um habeas corpus não? Obviamente todas essas perguntas foram retóricas, mas ainda assim é oportuna mais uma: Se, no Brasil, todos os juízes fossem honestos, haveria como praticar corrupção? E para uma pergunta utópica, cabe uma resposta utópica: Não, não haveria corrupção nem na política, nem na polícia, nem na gestão do dinheiro público, pois a certeza da punição combate com efetividade a prática da corrupção ou de qualquer outro crime.
Obviamente, a resposta acima além de utópica é simplista. Depositar no Poder Judiciário, nas polícias ou em qualquer outra instituição a responsabilidade ou esperança de extirpar a corrupção de nosso país, teria o mesmo teor leviano que acusar qualquer uma delas de ser a fonte de toda a corrupção.
Primeiramente é preciso entender que não está na política brasileira a origem de corrupção. Inclusive, não há registro de nenhuma nação do mundo em que o povo apresente práticas honestas e seus representantes sejam corruptos. E o contrário, igualmente, não encontra lastro na literatura. É até mesmo difícil imaginar uma sociedade onde as pessoas não jogam lixo na rua, não oferecem propina a policiais, não deixam de emitir nota fiscal, etc., acaba elegendo políticos que terminam mergulhando no mar de lama da corrupção. Nesse ínterim, é preciso pontuar a extrema incoerência de, por exemplo, um dono de posto de combustível que orienta seus funcionários a só apresentarem o cupom fiscal se o cliente exigir, na sua roda de amigos reclamar que político “a” ou “b” está envolvido em corrupção. Não há argumentos para concluir que o sistema político brasileiro seja corrompido e o povo ético.
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) que, entre outras coisas, dedicou-se a estudar as relações de poder em todas as suas formas, dizia que ética e política iniciam-se nos menores e mais simples atos e comportamentos. É o que ele chamava de “Microfísica do Poder”. Dessa forma, a família, a religião e a formação assumem papel de alicerce ou base de uma pirâmide que permeia todas as relações públicas e de fórum privado até culminar nos mais altos postos da República.
Entretanto, não poderemos afastar o papel das instituições democráticas no combate a corrupção de forma alguma e não é o que se pretende nessa reflexão. Até mesmo porque, há cerca de 10 anos, o senso comum sentenciava que no Brasil apenas os pobres iam para a cadeia. Hoje, grande parte do povo brasileiro já sabe que qualquer um pode ser preso, independente do cargo que ocupe, do poder ou influência política ou do seu poder aquisitivo. E essa mudança no consciente coletivo foi promovida sobretudo pelo trabalho dos vários órgãos de controle envolvidos nas investigações que levaram à prisão grandes expoentes políticos e financeiros de nosso país, como acima já foi mencionado.
E esta mudança no paradigma do combate a corrupção, também não ocorre de forma aleatória. É fruto do processo de amadurecimento da sociedade brasileira, sob vários aspectos, o que reflete inevitavelmente no amadurecimento das instituições. Claro que esse amadurecimento e, por conseguinte, o fortalecimento das instituições não ocorre de forma rápida e nem mesmo coesa. Mas a tendência é que os processos serão aperfeiçoados e os avanços continuarão acontecendo. Assim, a corrupção será cada vez mais combatida em todas as esferas do poder.
Agora sim cabe pontuar a fala de posse de Carmem Lúcia como presidente que, como bom discurso político que a ocasião permite, inicialmente já trata do Direito como um “produto de valores culturais” e as aspirações sobre a justiça. É exatamente esse caráter “construtivo” que devemos esperar dos magistrados, sobretudo, da Suprema Corte. A justiça e o combate a corrução não são “um produto pronto” para qual tenhamos o “fornecedor ideal”. Elas são construídas a partir de uma série de ações complexas e muitas vezes contraditória, a exemplo: as mesmas investigações as quais nos referimos acima, que levaram à prisão diversos políticos e empresários, também deixaram de levar outros tantos.
A eminente presidente igualmente reconheceu o momento de transição pelo qual passa o País, perfilhou o inconformismo popular em relação ao Judiciário, lembrou bem os deveres do “juiz” e os princípios constitucionais, bem como a participação de todos na “construção contínua da democracia brasileira”. Esperaremos, portanto, que os discursos políticos se restrinjam aos eventos políticos, e que os votos dos juízes, desembargadores e ministros sejam belos, empolgantes e admiráveis por sua técnica e fundamentação jurídica à luz de nosso ordenamento jurídico.
FRANKLIN ALBUQUERQUE DE MORAIS JÚNIOR
Diretor Parlamentar do Sindicato dos Policiais Federais do Acre – SINPOFAC
Presidente da Nova Central Sindical de Trabalhadores dos Estados do Acre e Rondônia – NCST/AC-RO