A chocante atitude de Gerson de Melo Machado, 19, ao invadir a jaula de uma leoa no zoológico de João Pessoa, esconde uma história de negligências que marcou sua vida. Ainda criança, ele foi afastado da mãe, diagnosticada com esquizofrenia — mesma doença da avó materna. Já no final da adolescência, o jovem recebeu diagnóstico de retardo mental e esquizofrenia.
Nesta manhã, Gerson escalou um muro de seis metros, sem ser interceptado, e chegou ao recinto da leoa Leona, no Parque Zoobotânico Arruda Câmara, conhecido como Bica. Ao descer de uma árvore, foi atacado e morto rapidamente, diante de dezenas de visitantes que viram tudo separados por um vidro.
Uma das pessoas que mais conhecia a história de Gerson é a conselheira tutelar Verônica Oliveira, que atua em Mangabeira, bairro da capital paraibana de onde ele era. Ao saber da morte, ela — que acompanhava havia 9 anos — lembrou do sonho que o jovem sempre contava: ir para a África para ser domador de leões.
“Ele uma vez foi pego já no trem de pouso de um avião que pensava ir para a África. Sorte que as câmeras viram. Ele tinha uma deficiência intelectual visível, mas só conseguiu diagnóstico quando entrou no sistema socioeducativo”, conta à coluna.
A conselheira acredita que Gérson estava em surto e não tinha noção do risco. “Ele precisava de acompanhamento de saúde mental digno, mas não teve. Todo o poder público falhou com ele, com a família.”
Primeira passagem
O Conselho Tutelar recebeu Gerson pela primeira vez aos 10 anos, levado por policiais rodoviários federais que o encontraram andando sozinho à beira da estrada, após fugir de um abrigo em Pedras de Fogo.
Quando o policial perguntou, ele disse que tinha fugido de casa em Mangabeira, onde moravam a mãe e a avó. Nós o levamos até lá, sem saber da história, e só então soubemos da verdade. Apesar de a mãe ter sido destituída, ele ainda queria ficar com ela. – Verônica Oliveira
Após a Justiça entender que a mãe não tinha condições de criar os filhos, Gerson e os quatro irmãos foram encaminhados para adoção. Todos foram adotados — menos ele. “Começou ali uma saga para ele ser acolhido”, lembra Verônica.
Em 2017, ouvimos de uma coordenadora de uma instituição de acolhimento que ninguém iria adotar uma criança como ele. Esse menino foi negligenciado, privado do direito de ter uma família e de um acompanhamento digno.
Verônica Oliveira
O laudo
Somente em 2023, Gerson recebeu o que seria seu primeiro laudo. A coluna teve acesso ao documento, datado de 2 de março de 2023 e assinado pelo psiquiatra Klecyus dos Reis, que apontou hipótese de retardo mental com transtorno de conduta e recomendou atenção integral.
O paciente evolui com comportamento disruptivo e dificuldades adaptativas. Segue com oscilações de humor, labilidade afetiva, agitação psicomotora e impulsividade. (…) Recomenda-se tratamento multidisciplinar em saúde mental, sob supervisão e regime integral.
Laudo médico
“Esse laudo só veio quando ele já tinha sofrido todos os horrores de violências e violações”, completa Verônica.
Detenções
Ao longo da curta vida, Gerson foi detido diversas vezes por crimes de baixo potencial ofensivo e chegou a ser internado em centros socioeducativos. “Ele gostava de estar lá, se sentia seguro e era medicado”, diz a conselheira.
Mas, ao atingir a maioridade, suas ações passaram a ter consequências maiores. “Ensinaram ele a ligar motos achadas na rua. Ele pegava, andava e depois deixava na delegacia. Todo mundo aqui o conhecia e ligava pra gente, porque o caso dele era de saúde mental, não de segurança.”
Na semana passada, ele foi detido pela última vez após tentar arrombar um caixa eletrônico. Ao ver o carro da polícia, teria arremessado pedras.
Preso em flagrante, foi levado ao Presídio do Roger, em João Pessoa, mas liberado no dia seguinte, após audiência de custódia, e encaminhado para tratamento psiquiátrico. Na decisão, consta um diagnóstico mais recente informando que, além do retardo, cita que ele tem esquizofrenia.
O diretor do presídio, Edmilson Alves, gravou um vídeo após a morte e confirmou que Gerson teve seis passagens pelo local desde os 18 anos.
“A gente sabia que ele precisava de ajuda e de tratamento. A Justiça também entendeu que o local dele não era o presídio e decidiu que ele iria para o Caps [Centro de Atenção Psicossocial]”, conta.
A maioria dos crimes de Vaqueirinho [como era conhecido] era por dano e pequenos furtos. Não estou romantizando, mas era um rapaz com problemas mentais, e a gente alertou. Posso dizer com certeza: a nossa parte, o sistema penitenciário fez. – Edmilson Alves
Volta ao conselho
Um dia após ser solto, Gerson procurou o Conselho Tutelar.
“Ele me falou: ‘Tia Verônica, o cara do presídio disse que eu tenho que tirar a carteira de trabalho, a senhora me ajuda?’ Eu fiz uma cópia e expliquei onde ele devia ir”, conta.
Gerson não tinha casa fixa. Passava a maior parte das noites na casa da avó esquizofrênica, que o deixava dormir lá. “Mas ele era inquieto, vivia andando”, lembra Verônica.
Ela afirma que Gerson foi vítima da falta de assistência em saúde mental em João Pessoa. “Por que precisou morrer para se provar que ele tinha deficiência mental e precisava de cuidados? Que fique o exemplo para todos.”
O caos na cidade é claro pela falta de locais para onde levar pacientes. Ele precisava ser internado, ter tratamento. Temos um procedimento aqui sobre ele com mais de 100 páginas, sem nunca ter solução. É muito triste ele morrer porque ninguém fez nada.
Verônica Oliveira
A coluna procurou a Prefeitura de João Pessoa para comentar sobre os cuidados na área de saúde mental, e aguarda retorno. O espaço segue aberto.


















