É necessário conversar sobre habitação popular. O tema já foi demasiadamente desrespeitado por gestores públicos nos últimos anos aqui pelo Acre, sobretudo na Capital. É preciso falar com seriedade. E o “Caso Papoco” oferece oportunidade para reflexão mais grave. O assunto exige.
Convém falar um pouco da história do lugar. O bairro é o Dom Giocondo. É este o nome daquela comunidade. O lugar é pejorativamente chamado “Papoco” (uma onomatopeia, que sugere imitação do barulho de tiros seguindo as derivações “pou-pou-pou”; “pipoco” e, finalmente, “papoco”). Surgiu nos anos 70. Compreende uma área de barranco, aproximadamente, entre o Forró do Amiraldo/“Cristo do Zamir” e as imediações do Instituto São José. Era uma conhecida região de prostíbulos da cidade.
E por que essa região foi ocupada? É preciso lembrar que nos anos 70, Rio Branco foi ocupada por milhares de
famílias de extrativistas que foram expulsas das colocações de seringa em função da atividade pecuária, que substituía a produção de borracha com a chegada dos “paulistas”, atraídos pela propaganda oficial de que o Acre era um “Nordeste sem seca e um Paraná sem geada”.
Desta forma, surgiram várias comunidades em Rio Branco, que explodiu com o “êxodo florestal”. A miséria e a exclusão foram se acomodando em vários lugares, acompanhando igarapés e os trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base. Assim surgiu a ocupação da fazenda da família Sobral, o Palheiral, Bahia, Aeroporto Velho. O maior símbolo dessa luta foi o líder comunitário João Eduardo, assassinado em fevereiro de 81, justamente em função da luta do Movimento Popular por ocupação dos espaços urbanos e moradia.
A atual Prefeitura de Rio Branco tem dificuldade de olhar para esse retrovisor e tentar entender esse processo histórico. Não se trata de romantizar a exclusão e a miséria. Trata-se observar as ações do poder público como parte de um processo que deveria ter, como núcleo, o respeito às comunidades e às suas histórias.
O que está se desenhando no “Caso Papoco”? Em uma palavra, conflito. O que tem se configurado é o roteiro de uma novela velha. A Prefeitura de Rio Branco, com uma concepção higienista, quer “limpar” a área, com o argumento de ser uma área de risco, com moradias insalubres, concentração de dependentes químicos e de haver comércio e tráfico de drogas.
Nos cálculos da Prefeitura de Rio Branco, menos de 10 famílias, em um universo de 70 moradias, não querem sair do lugar para serem removidas para o conjunto habitacional Rosalinda, periferia da cidade. Na cabeça do prefeito, regurgita a seguinte indagação: “como é que pode uma família que mora em um lugar daqueles, insalubre, condenado pela Defesa Civil, que alaga todo ano, com traficantes e drogados… como é que uma
família que vive assim não quer ser levada para o Rosalinda?” Eh… leitor… tem cabeças cheias disto!
A percepção de urbanismo da atual prefeitura estacionou no fim do século XIX. Essa dinâmica de “limpar” as regiões centrais (com os mais variados argumentos) e despejar as famílias de renda mais baixa para as periferias não é nada inteligente, para manter o respeito e o decoro. O necessário a se fazer é justamente o contrário.
O que necessita ser feito é o caminho inverso: as famílias com renda mais baixa devem ter moradias em regiões mais centrais, com serviços e aparelhos públicos mais acessíveis. Nas regiões mais centrais é onde, geralmente, concentra o maior volume de empresas onde esses trabalhadores precisam estar todos os dias para garantir o sustento. Morando em regiões mais centrais, podem se locomover à pé ou de bicicleta, sem precisar percorrer grandes distâncias para trabalhar ou renovar um documento, por exemplo. Em uma cidade com o mínimo planejamento, quem mora afastado do Centro são as famílias de maior renda.
Mesmo porque o morador sabe que no Rosalinda ou em qualquer outro conjunto habitacional que a prefeitura oferecer em outra região, os serviços públicos têm qualidade duvidosa. Entre ser excluído de serviços públicos no Centro ou na periferia, a ideia de pertencimento a uma comunidade prevalece, tenha essa comunidade os problemas que tiver.
Este editorial nem vai falar sobre o conceito de “Cidade Inteligente”. Nem cabe ao orçamento e à realidade das coisas por aqui. Mas uma cidade com o mínimo de planejamento, precisa rejeitar a ideia populista de grandes projetos habitacionais. Rendem fotos, manchetes e fitas de inauguração. Mas são caros, exigem infraestrutura de saneamento bilionária e diferentes modais de transporte.
Outro preconceito que fervilha em cabeças oficiais é o seguinte: “a gente quer dar casa nova ‘para esse povo’ (sic), mas eles gostam de viver ali, no sofrimento!” É um raciocínio tão simplório que é preciso citar apenas para que o leitor perceba a gravidade (e o nível) da gestão.
O fator “Segurança Pública” é outro elemento de difícil compreensão. Uma Polícia Civil que não consegue manter um sistema de inteligência com capacidade de desbaratar a ação de traficantes de beira de barranco é preciso rever procedimentos. É evidente que o problema do tráfico no Papoco não se resolveu porque não foi priorizado até agora. No dia que for, a Polícia Civil do Acre tem competência e equipe suficiente para resolver o problema.
É preciso repensar a reocupação de espaços urbanos com racionalidade. Ou se faz isso, ou a Prefeitura de Rio Branco encontra mil e um argumentos para fazer o mais do mesmo, sem criatividade e sem respeitar a história de quem vive onde quer viver por falta de acesso a serviços públicos, aonde quer que eles estejam.


















