Categorias: Cotidiano

A Vergonha da Virtude na Pólis Corrompida

Por
Artigo

Por Chico Araújo


Imagine-se no crepúsculo de uma era, onde a honestidade não é escudo, mas estigma: de tanto ver triunfar as nulidades, prosperar a desonra, crescer a injustiça e agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, a gente acaba num nojo da virtude e tem vergonha de ser honesto. Foi assim que Rui Barbosa bradou em 1914, desmascarando o veneno que rói as instituições por dentro, um eco lancinante para quem, no furacão dos desmandos, carrega a retidão como um peso invisível. E nesse redemoinho moral, Maquiavel surge como um sussurro provocador em O Príncipe: “É necessário a um príncipe que queira manter-se saber como fazer o mal e usá-lo ou não conforme a necessidade”. Suas palavras não são mero cinismo, mas uma lâmina afiada: as virtudes políticas não florescem como flores frágeis, mas como armas forjadas para salvaguardar o Estado, entrelaçando o bem comum à astúcia calculada, onde o fim, por vezes impiedoso, justifica os meios em um equilíbrio tênue entre ética e sobrevivência.


Agora, volte os olhos para a Roma antiga, onde essa tensão explode em cores vívidas: Cícero, o sentinela da República, confronta o vendaval conspiratório de Catilina, imortalizando-o nas Catilinárias com um rugido eterno – “Até quando, ó Catilina, abusarás de nossa paciência?”. Cícero encarna a chama cívica que Platão, em A República, erigira como o farol do filósofo-rei, iluminando a pólis contra o abismo da oclocracia, esse governo da multidão desenfreada que ameaça engolir tudo. Oclocracia – do grego ochlos, “multidão” ou “turba”, e kratos, “poder” ou “governo” – é um conceito forjado na fornalha da Antiguidade Clássica para nomear a podridão de uma democracia desgovernada, onde o poder escorre para as mãos de uma horda impulsionada por paixões cegas, demagogos charlatães e impulsos irracionais, longe das âncoras de leis racionais ou instituições serenas. Políbio, em sua História, a pintava como o quarto estágio no ciclo fatal das constituições mistas: da monarquia à aristocracia, da democracia à anarquia, onde a liberdade desbocada pavimenta o caminho para a tirania. Aristóteles, em Política, a rotulava como a corrupção pura da democracia – oposta à politeia, o regime moderado do povo –, um veneno que faz o homem, esse animal político por essência, afundar no excesso de liberdade sem o freio da lei. Diferente da democracia genuína, que Aristóteles e Tocqueville celebravam como o governo do demos (povo) ancorado em deliberação ética, proteção de minorias e busca pelo bem comum através de instituições equilibradas e participação informada, a oclocracia é sua sombra distorcida: o “governo da turba” caótica, onde a voz popular vira berro opressor, erodindo direitos e colapsando estruturas em nome de uma igualdade ilusória. Histórias antigas sussurram lições amargas: em Atenas do século V a.C., a assembleia envenenada por retórica inflamada condenou Sócrates à cicuta, traindo a razão helênica pela fúria da plebe; na Roma republicana agonizante, turbas urbanas, marionetes de tribunos radicais, aceleraram o fim da República, abrindo as portas para o jugo imperial. E Catilina? Ele é o espelho invertido do niilismo socrático: enquanto Sócrates, no Fédon, declarava que “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”, o ambicioso demagogo tecia tramas nas trevas, sem o escrutínio ético da paideia grega, trocando a justiça suprema por um poder faminto e cego.


Essa fenda ancestral reverbera hoje no coração da política brasileira, como um eco que não cessa, onde a oclocracia se espalha como uma praga insidiosa, nutrida pela corrupção que sangra os cofres públicos e pelo crime organizado que se infiltra nos salões do poder – de megadesfalques bilionários a pactos sombrios que convertem o Congresso em coliseu de falsos heróis sem brio. O cidadão de bem, descendente relutante de Barbosa, não sente só repulsa, mas uma vergonha que corrói as entranhas pela turba de políticos que nos representa: sombras que, longe de ecoar o denodo de Cícero pela res publica, dançam com o catilinismo revivido, vendendo pão e circo em pleitos viciados, enquanto a corrosão moral – essa hybris platônica de soberba desmedida – arrasta o País para o precipício. Mas e se essa dor fosse o chamado para uma revolução interior? Uma catarse socrática nos impele: dissecar a vida política com olhos implacáveis, resgatar a astúcia maquiavélica para o altar do bem coletivo e escolher, por fim, não charlatães, mas visionários, trocando o rubor da vergonha pela faísca de uma pólis renascida.


Avance para o século XIX, e Alexis de Tocqueville, em A Democracia na América, aprofunda o enigma com uma precisão cirúrgica, alertando para a “tirania da maioria” – não o despotismo de ferro, mas um jugo sedoso que asfixia a alma individual e a fibra cívica sob o manto do consenso coletivo, onde a oclocracia se mascara de igualdade democrática, minando pilares institucionais com sussurros sociais e o aviltamento do diálogo moral. Tocqueville, espião sutil da república americana nascente, enxergava o perigo latente: uma liberdade sem os contrapesos aristotélicos que gera mediocridade ética, ressoando o asco de Barbosa, isolando o honesto em sua minoria teimosa, envergonhado perante uma massa que ovaciona a desfaçatez como rotina, transmutando a democracia em labirinto onde a virtude vira herege. No Brasil, esse raio de luz revela as entranhas da polarização midiática e do voto trocado por favores, tecendo uma tirania invisível que, sob narrativas populistas, santifica a corrupção como “o jeito das coisas”, intensificando a hybris platônica em uma terra de democracia vibrante, mas faminta por laços cívicos robustos contra o vácuo tocquevilliano.


O século XX traz Hannah Arendt para escancarar a ferida em As Origens do Totalitarismo, diagnosticando a “banalidade do mal” – não o titã catiliniano de garras afiadas, mas o funcionário cinzento, vazio de reflexão, que multiplica abominações como quem assina papéis, a exemplo dos carrascos do Holocausto que rotinizavam o horror. Na corrupção brasileira, essa trivialidade se revela nua: os saques aos erários não brotam de epopeias malignas, mas de escolhas mundanas, ecoadas sem interrogação, corroendo o espaço público em um deserto de accountability compartilhado. Arendt nos sacode para uma sentinela perpétua contra o torpor, ecoando Sócrates ao martelar que o mal político viceja na preguiça do escrutínio moral, metamorfoseando a oclocracia em totalitarismo disfarçado, onde a turba, hipnotizada, aclama seus verdugos.


Pensadores da modernidade expandem o horizonte, como Francis Fukuyama em Ordem Política e Decadência Política, que dissecam como democracias adultas afundam na “decadência vetocrática” – um atoleiro de conluios clientelistas onde corporações e potentados se enredam, travando mudanças e ungindo a corrupção como óleo essencial do engrenagem. Em eco a Maquiavel, Fukuyama sugere uma “captura regulatória” como elixir, mas soa o alarme: sem regeneração de raízes, a ética cívica se desfaz em desdém universal. Jürgen Habermas, em A Transformação Estrutural da Esfera Pública, chora o ocaso do raciocínio puro ante o “público plebiscitário”, forjado por telas e demagogos, que Aristóteles apontaria como o útero da oclocracia: o logos socrático afogado em bordões, a podridão se propagando não por maquinações, mas por um fórum público estilhaçado, onde o indivíduo, solitário, cora de sua inércia.


Eis o Brasil de 2025, onde essas ideias se materializam em contornos cruéis: a corrupção desponta como o espectro maior na alma brasileira, eclipsando até o terror das ruas, conforme sondagens frescas da AtlasIntel e Ipsos. O Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional crava o recorde sombrio: meros 34 pontos, 107º no mundo, um declínio fukuyamiano acentuado por veredictos judiciais polêmicos, como o do STF (Supremo Tribunal Federal) que afrouxa o cabresto ao nepotismo, escancarando brechas para desvios clientelistas. Mesmo com picos de buscas anticorrupção pela CGU e PF, e o desdobramento do Plano de Integridade 2025-2027, a oclocracia arendtiana teima: tramas obscuras no Legislativo e tentáculos criminosos em feudos regionais perpetuam o opróbrio barbosa, deixando o íntegro boquiaberto ante a trivialização do mal em rodopios de escândalos que, à la Roma de Cícero, rondam a res publica. Que faremos, então? Invocar Habermas para reavivar o fórum público com diálogos puros, não urdidos; Fukuyama para estilhaçar a vetocracia com cirurgias ousadas; Tocqueville para tecer redes cívicas contra o jugo da maioria – resgatando nossa pólis da hybris do agora, rumo a uma democracia escrutinada, virtuosa, onde a vergonha se dissolve em vigor renovado.


Chico Araújo, advogado, jornalista e teólogo, autor de “Quando Convivi com os Ratos” (Editora Social, 2024) e “Sombras do Poder: As Vísceras da Corrupção no Acre na Operação Ptolomeu” (Editora Social, 2025).


Compartilhe
Por
Artigo