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O Cooperativismo como Ponte para o Futuro da Produção Familiar no Acre

Por
Irailton Lima

A história do Acre é, em boa medida, a história de sua gente da floresta — extrativistas e agricultores familiares que insistem em sobreviver num território onde a natureza é generosa e desafiadora. Desde Chico Mendes, a narrativa do desenvolvimento com justiça social acompanha o imaginário acreano, mas a distância entre o desejo, o trabalho e os resultados práticos continuam abissal. A produção familiar e agroextrativista, como descrevi no texto anterior, segue enfrentando os mesmos fantasmas: fragmentação produtiva, falta de escala, crédito inacessível, serviços públicos precários e mercados que ainda veem os produtos da floresta mais como artigo de nicho do que como ativo estratégico. Nesse cenário, o cooperativismo não é apenas uma alternativa: é uma forma de resistência organizada contra o isolamento econômico e político imposto às populações que vivem do que a floresta oferece.


Aqui, como prometido na semana que passou, quero mostrar como a trajetória da Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (COOPERACRE), refletida em seu Plano Estratégico 2023–2028, ilustra de maneira contundente como a força coletiva pode subverter a lógica da dependência e abrir caminho para uma economia de base social. O documento, no caso, o PES da Cooperacre, é mais do que um roteiro de gestão — é uma tentativa de provar que o desenvolvimento pode ser planejado fora dos gabinetes e longe das conveniências eleitorais.


Da fragmentação à escala: a força do coletivo


O produtor isolado de castanha, borracha, frutas ou café é, em geral, um símbolo da vulnerabilidade: enfrenta custos logísticos proibitivos, mercados desorganizados e um poder de barganha minúsculo. O cooperativismo, ao reunir centenas — por vezes milhares — de famílias, quebra essa lógica atomizada. A Cooperacre, por exemplo, projeta saltos ousados: de 350 mil para 600 mil latas de castanha; de 757 mil para 2 milhões de quilos de borracha; e um crescimento de mais de 700% na produção de frutas até 2028. São números que só se sustentam porque há planejamento coletivo e propósito compartilhado — dois bens escassos na economia e, convenhamos, ainda mais raros junto à maioria dos políticos.



Essa escala também viabiliza algo que o produtor individual jamais conseguiria: investir em infraestrutura. O plano prevê desde pontos de recolhimento e uma indústria de café até a plena operação da nova fábrica de polpas de frutas. É nesse tipo de investimento que o cooperativismo mostra seu verdadeiro valor — a capacidade de transformar matéria-prima em produto competitivo. E, de quebra, mostrar que a floresta pode gerar riqueza sem precisar ser destruída, o que parece sempre surpreender aqueles que só enxergam o desenvolvimento quando há fumaça subindo no horizonte.


Crédito, serviços e mercado: as pontes que o Estado raramente constrói


A falta de crédito é o ponto de estrangulamento mais persistente da produção familiar. A burocracia bancária, os prazos incompatíveis com os ciclos produtivos e as exigências de garantias fazem do pequeno produtor um eterno devedor sem empréstimo. Já uma cooperativa, enquanto pessoa jurídica sólida, ganha musculatura para dialogar com instituições do porte de um BNDES ou dos grandes bancos privados. O Plano da Cooperacre reconhece o problema — fala de “não acesso a créditos” e “financiamento insuficiente” —, mas também revela que é possível romper o cerco da informalidade com credibilidade coletiva.


O mesmo vale para a assistência técnica e a infraestrutura. É curioso observar que, enquanto o poder público multiplica programas e anúncios, nos territórios, a maioria dos ramais continuam intransitáveis e os serviços de ATER, quando existem, aparecem quase como favor político ao invés de política pública estruturada. A Cooperacre tenta inverter essa lógica: planeja estruturar um sistema próprio de ATER, articular parcerias com órgãos como INCRA, EMBRAPA, IFAC, UFAC e SOS Amazônia. Em outras palavras, faz o que o Estado deveria fazer.



No mercado, a cooperativa mira longe. Busca certificações, rastreabilidade e novos canais de comercialização, explorando programas como PAA, PNAE e PGPM-Bio. São políticas públicas importantes, mas que padecem de um mal crônico: dependem do humor orçamentário e da boa vontade e comprometimento dos gestores. No Acre, ainda é comum que o cumprimento da lei pareça um gesto magnânimo do governante — e não uma obrigação institucional.


O poder público e sua conhecida dificuldade de enxergar o coletivo


Se o cooperativismo tem se mostrado a resposta prática aos dilemas da produção familiar, o poder público ainda ensaia compreender o papel que lhe cabe nesse processo. A persistência dos gargalos que as cooperativas enfrentam expõe uma fragilidade estrutural: o poder público quase sempre é ágil em anunciar políticas, mas lento em sustentar estratégias.


O desafio é justamente romper com o ciclo da improvisação. É preciso transformar as boas intenções em continuidade — e a continuidade em política de Estado, para além de meras vitrines eleitorais. O acesso a crédito, por exemplo, não será resolvido com programas episódicos; requer instituições que funcionem, prazos que respeitem o tempo da produção e regras que reconheçam a especificidade amazônica.


Da mesma forma, a assistência técnica precisa sair da retórica. Enquanto for operada com o improviso e amadorismo que a caracterizam há já longos anos, continuará sendo um paliativo, não uma solução. Investir em pesquisa aplicada, manejo sustentável e tecnologias adaptadas é tarefa de Estado, não de ONGs. O mesmo vale para a infraestrutura: sem planejamento territorial e coordenação entre esferas de governo, os municípios continuarão oferecendo ramais que somem na primeira chuva.


Cooperativismo e a aposta no futuro


O cooperativismo, em sua essência, é um antídoto contra o paternalismo político. Ele desloca o eixo da dependência para a autogestão, da espera pela ajuda para o exercício da autonomia. No Acre, ele representa talvez a última fronteira concreta entre a retórica da sustentabilidade e a prática da economia real.


Mas, para florescer plenamente, precisa de um Estado menos refém do imediatismo e mais comprometido com a construção de um ambiente produtivo de longo prazo. O desafio não é técnico — é político. Exige que o poder público abandone o hábito de tratar políticas estruturantes como “ações de governo” e reconheça o cooperativismo como vetor estratégico da bioeconomia amazônica.


O futuro da produção familiar no Acre passa por essa aliança — entre a força coletiva das cooperativas e um Estado, em suas três esferas de governo, que finalmente compreenda que governar não é distribuir favores, mas criar condições para que o trabalho das pessoas floresça com dignidade e inteligência. Atores sociais para isso já temos, basta ver o potente trabalho de uma OCB-AC e da própria COOPERACRE com sua rede de cooperativas vinculadas.


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