O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva • Marcelo Camargo/Agência Brasi
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou com vetos um projeto de lei complementar aprovado pelo Congresso Nacional que altera a Lei da Ficha Limpa. A decisão foi publicada na edição do DOU (Diário Oficial da União) de terça-feira (30).
A proposta foi aprovada pelo Legislativo no início do mês e, na prática, reduz o tempo de punição para políticos cassados. Isso valeria para parlamentares (deputados, senadores, vereadores), governadores, prefeitos e seus vices.
Até então, a legislação definia que políticos declarados inelegíveis não poderiam disputar eleições ao longo do mandato em curso e nem nos oito anos seguintes ao seu término.
O doutor em Direito Constitucional pela USP Antonio Carlos de Freitas Jr. detalha à CNN as mudanças na legislação.
“A legislação hoje vigente determina, como regra, que aqueles que se tornam inelegíveis assim o ficam por um período — como o restante do mandato ou o cumprimento da pena — para que somente após esse período passe a contar o prazo de inelegibilidade. Com a recente Lei Complementar 219/2025, tal regra foi alterada para que, em vários casos, a inelegibilidade passe a contar do ato ou fato que dê origem a esta.”
“Por exemplo, anteriormente, políticos que viessem a perder os mandatos não podiam disputar eleições durante o mandato em curso e nem nos oito anos subsequentes ao fim deste. Com a alteração promovida pela LC 219/2025, o prazo passa a contar a partir da decisão que decretar a perda de mandato, o que diminui o prazo de inelegibilidade dos condenados”, exemplifica o especialista.
O projeto sancionado por Lula também abranda o período de inelegibilidade para condenados por crimes eleitorais e de abuso de autoridade, por exemplo.
“Anteriormente os cidadãos ficavam inelegíveis por oito anos após o cumprimento da pena — e partir do trânsito em julgado da decisão, no caso de improbidade —, a partir de agora, tal prazo conta-se a partir da condenação por órgão colegiado. Crimes mais graves como organização criminosa e tráfico de drogas continuam com a regra antiga”, diz Antonio Carlos.
“Na prática, a condenação por órgão colegiado ocorre geralmente muito antes da condenação em segunda instância, por órgão colegiado. Como existem recursos cabíveis após tal condenação, o prazo de inelegibilidade somente começava a contar meses ou anos depois da condenação, mantendo o cidadão inelegível por mais tempo. No caso das condenações criminais tal cenário foi alterado de maneira mais radical, pois, logicamente, o cumprimento da pena se dá vários anos após a condenação por órgão colegiado”, continua.
Desincompatibilização e criação de requerimento
O texto sancionado na terça-feira determina também que integrantes do MP (Ministério Público), da Defensoria Pública e das polícias civil e militar devem deixar seus cargos seis meses antes do primeiro turno das eleições para que possam disputar o pleito.
Segundo Antonio Carlos, a regra anterior previa a desincompatibilização quatro meses antes do primeiro turno para esses servidores.
Por fim, o projeto de lei ainda cria o chamado Requerimento de Declaração de Elegibilidade à Justiça Eleitoral, que permite aos pré-candidatos ter conhecimento de sua real situação eleitoral antes mesmo do pedido de registro de candidatura.
“Atualmente, ocorrem casos em que o cidadão inicia sua campanha e somente vem a ser declarado inelegível em data próxima à eleição, descartando todos os recursos empreendidos. Trata-se de avanço sobre o período de pré-campanha, pouco tratado pela legislação atual, não havendo, até então, regras claras para tal período”, conclui o especialista.
O que diz o Planalto sobre os vetos
Lula barrou três trechos do projeto, inclusive um que dispunha sobre o efeito retroativo em relação a condenações e a fatos pretéritos.
A decisão de Lula atendeu a recomendações técnicas da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Ministério da Justiça, que avaliaram os dispositivos como inconstitucionais e prejudiciais ao combate à corrupção.
Os pareceres destacaram que a mudança fragilizaria conquistas da lei aprovada em 2010, considerada um marco no fortalecimento da ética na política.
Em justificativa publicada no DOU sobre o primeiro veto, o Planalto argumenta que:
“A nova redação da alínea, ao fixar o início do prazo da contagem a partir da ‘data da eleição’, cria distorções que resultam em aplicação desigual da sanção. Assim, candidatos condenados por abuso de poder e em situação jurídica idêntica poderiam ter tratamento distintos: os condenados após o pleito cumpririam integralmente os oito anos de inelegibilidade, enquanto aqueles cuja condenação ocorresse anos depois poderiam cumprir um período significativamente menor, ou até nenhum período útil de inelegibilidade, no caso dos não eleitos. A nova redação, portanto, viola o princípio da isonomia (art. 5º, caput, da Constituição) ao introduzir um critério arbitrário e desigual entre candidatos em situações equivalentes.”
Acerca da retroatividade, o Executivo aponta que:
“Os dispositivos impugnados autorizam a aplicação imediata de normas mais brandas, inclusive a fatos e condenações já definitivamente julgados. Contudo, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1.199 da Repercussão Geral, ao ponderar entre os princípios da retroatividade benéfica e da moralidade administrativa, a Corte conferiu primazia a este último, reafirmando a regra da irretroatividade.
Além disso, a inovação normativa afronta diretamente o princípio da segurança jurídica, assegurado no art. 5º, caput, inciso XXXVI, da Constituição, ao relativizar a coisa julgada, uma vez que permitiria que decisões judiciais transitadas em julgado fossem esvaziadas por legislação superveniente. O respeito à coisa julgada é indispensável à segurança jurídica e à estabilidade institucional, e não deve ser relativizado por norma infraconstitucional, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade.”
Os vetos agora serão analisados pelo Congresso Nacional, que poderá mantê-lo ou derrubá-lo em sessão conjunta de deputados e senadores.
A decisão reacende o debate sobre os limites da Lei da Ficha Limpa e expõe mais uma frente de disputa entre o Palácio do Planalto e o Legislativo.