Anistia e PEC da Impunidade: a política contra o povo

Por
Irailton Lima

O Brasil viveu, neste domingo passado, um dia de celebração. Um encontro do povo nas ruas com o que pensa a maioria de sua população silenciosa. Diferente dos momentos em que minorias barulhentas, verdadeiros nichos políticos, tentam transformar sua visão parcial em poder de influência sobre a consciência coletiva — algo que a extrema direita tem manuseado com bastante eficiência nos últimos anos —, as manifestações da esquerda, no domingo, estavam em sintonia com o que apontam pesquisas nacionais sobre a opinião popular a respeito da PEC da Blindagem, ou PEC da Impunidade, e do PL da Anistia, este último concebido para livrar da cadeia criminosos que atentaram contra as instituições democráticas.


As manifestações reuniram aquilo que deve estar presente quando o povo vai às ruas: multidão, alegria e democracia. Rio, São Paulo e Salvador foram emblemáticas, de tão grandes. Mas, em muitas outras cidades, a esquerda mostrou vigor de mobilização: Belo Horizonte, Natal, Porto Alegre, Recife, Fortaleza, Belém. Mesmo em Rio Branco, no ato realizado no “Lago do Amor”, compareceu um número de pessoas que há muito não se via — bem maior que o das manifestações recentes do bolsonarismo.


Agora é o momento do rescaldo, com interpretações, análises e conversas de corredor. Alguns absurdos, porém, precisam ser contrapostos de imediato, para evitar que, mais uma vez, argumentos enviesados — mais interessados em confundir do que esclarecer — enuviem consciências bem-intencionadas. É o caso da comparação entre a anistia de 1979 e a proposta atual em debate no Congresso. E é também o caso da revolta popular contra a tentativa de parte considerável da classe política de aprovar uma emenda constitucional destinada a blindar parlamentares contra eventuais responsabilizações criminais.


Comecemos pela anistia. Comparar o que pretende a extrema direita hoje com a anistia de 1979 é mais que erro de análise — é manipulação histórica. A anistia do fim da ditadura foi resultado de uma longa e penosa luta social. Desde o início dos anos 1970, familiares de presos e desaparecidos se organizaram em comitês, pressionando pelo retorno dos exilados e pela libertação de perseguidos políticos. A OAB se engajou, a imprensa — mesmo sob censura — abriu espaço, e a campanha ganhou adesão de estudantes, sindicatos, intelectuais e artistas. Era uma mobilização de massa contra o arbítrio e a favor da democracia, que obrigou o regime dos militares a ceder.


A Lei de Anistia, aprovada em 1979, foi contraditória e incompleta: perdoou tanto militantes pela democracia quanto torturadores. Muitos a consideram “ampla, geral e irrestrita” demais, por ter consolidado a impunidade de crimes de Estado. Ainda assim, foi um marco: permitiu o retorno dos exilados, reabriu o espaço político e lançou as bases da redemocratização. Em suma, foi instrumento — imperfeito, mas necessário — para encerrar um ciclo autoritário.


A proposta atual é de outra natureza. Não aponta para transição democrática, mas para retrocesso. Ao propor perdão a quem atentou contra a ordem constitucional, busca-se transformar crimes contra o Estado de Direito em “gestos patrióticos”. Não há perseguidos políticos, mas réus flagrados em atos de depredação e conspiração contra a democracia. A diferença é abissal: em 1979, a anistia foi o preço — alto e polêmico — para desmontar um regime de exceção; hoje, querem convertê-la em prêmio para conspiradores contra a Constituição de 1988.


Vale lembrar, como mencionei semana passada, o alerta de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracias Morrem: ataques às instituições, questionamento de resultados eleitorais e mobilização de massas contra inimigos imaginários não são desvios isolados, mas parte de uma estratégia global de corrosão democrática. Foi assim nos EUA, com a invasão do Capitólio; é assim em regimes autocráticos da Europa Oriental; e foi assim, no Brasil, no 8 de janeiro.


A retórica que tenta pintar ativistas da trama golpista bolsonarista como inocentes senhoras a passeio num domingo qualquer na Praça dos Três Poderes e militantes da resistência armada como “terroristas vitalícios” faz parte desse jogo. Mistura contextos históricos incomparáveis, teorias políticas e devaneios retóricos, embaralha causas e consequências, para apresentar extremistas de direita como vítimas do poder.


No fundo, a anistia de 1979, com todas as suas ambiguidades, tinha como horizonte ampliar a democracia. A proposta atual, pelo contrário, busca estreitá-la, ao abrir precedente para novos ataques sem consequências. A lição é clara: a anistia de ontem ajudou a sair da ditadura; a de hoje seria convite para nela retornar.


E não se pode esquecer a gravidade que seria aprovar uma anistia em meio à brutal e irracional agressão do governo Trump contra a soberania brasileira — o que só reforçaria a imagem de humilhante submissão.


Agora, tão grave quanto o PL da Anistia é a PEC da Impunidade, aprovada na Câmara em dois turnos e agora nas mãos do Senado. Uma obra-prima da direita brasileira, da junção do Centrão com a extrema direita bolsonarista. O recado é cristalino: o poder, com eles, serve para tudo, inclusive para lhes garantir imunidade sobre seus malfeitos.


As ruas, porém, mostraram que não é bem assim. O preço a pagar pode ser alto, sobretudo diante da proximidade das eleições de 2026. É um alerta contra a apatia de uma sociedade que, há anos, assiste a um parlamento operando com gula desmedida sobre os demais poderes — tragando atribuições do Executivo e, agora, ameaçando vorazmente o Judiciário.


Quem sabe o jogo comece a virar. Quem sabe o povo nas ruas reequilibre as forças e faça prevalecer os interesses das pessoas comuns — como, por exemplo, a aprovação da isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais — sobre os casuísmos da política pequena e os desejos autoritários da extrema direita.


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Irailton Lima