Menu

O chamado do abismo… (Ícaro no divã)

Você já viveu a experiência de um desejo súbito e passageiro de pular de um lugar alto, como a beira de um edifício, uma ponte ou penhasco, mesmo sem intenções suicidas? É um fenômeno conhecido como “O Chamado do Abismo.  l’appel du vide, o “Chamado do Vazio”.


Está é uma história real sobre essa experiência…


A primeira vez que Ícaro ouviu o chamado do abismo tinha 18 anos, no edifício Copan, de 35 andares, na cidade de São Paulo. À época, um ponto turístico de uma das maiores cidades do mundo. Aconteceu no inverno de 1980 em um final de tarde. O céu estava cinzento, um vento frio penetrava na alma e a sensação de solidão e abandono em meio à multidão contrastava com a visão amplificada da selva de concreto.


Foi levado por Marília, nascida em São Paulo, mas que morou no Acre por dois anos quando se conheceram, e que conhecia a cidade como a palma da mão. Ícaro, um jovem nascido na extensa planície amazônica, sentiu-se desafiado pela altura do edifício. Marília o levou até o topo, onde a vista se estendia até o horizonte.


Sentiu-se pequeno diante da grandiosidade da imensidão de concreto e aço. Ao aproximar-se da borda do prédio sentiu um desejo de pular. De mergulhar no vazio. Não era voo, era queda.


O cérebro de Ícaro rapidamente reconheceu o desejo como uma ameaça, levando-o a dar um passo atrás, literal e figurativamente. “Meu Deus! Meu Deus! O que é isso! Não quero morrer, não quero pular “, reagiu conscientemente, enquanto seu coração batia forte no peito. Um medo primitivo que ascendia desde os primórdios do tempo.


O temor extremo quase o dominou, como um pânico, deixando-o pálido, com as pernas trêmulas e a garganta seca. O impulso de pular parecia ter vida própria, ameaçando consumir sua racionalidade e controle. Ícaro sentiu-se como se estivesse lutando contra uma força desconhecida, que o puxava em direção ao vazio. Uma sensação estranha e inexplicável o invadiu, como se algo desconhecido estivesse lutando para emergir. “Nossa, que sensação estranha’”, pensou ele, tentando identificar a origem daquele desejo ilógico.


Ícaro se recompôs rapidamente, antes que Marília percebesse sua palidez e o questionasse sobre seu estado. “Seria medo de altura”? indagou-se. “Não, não era isso. Foi um impulso primitivo, que surgiu de forma súbita e inesperada”, repetiu para si.


Marília, cujos olhos azuis profundos contrastavam com o céu cinzento e a voz cálida com o frio, notou algo estranho e perguntou: “Você está bem Ícaro, está sentindo vertigem”? Ícaro hesitou por um momento antes de responder: “Não, sim, quer dizer estou bem. Deve ser o vento aqui em cima, é muito frio”.  A amiga sorriu e disse: “Ah, já sei, você deve ter medo de altura”. Ícaro balançou a cabeça involuntariamente tentando escapar do constrangimento. “Eu não tenho”, disse Marília, tentando reconfortá-lo. Gosto desse lugar, vim com minha mãe muitas vezes quando era criança. Gosto de ver São Paulo, essa imensidão de prédios e pessoas juntas”.


Anos se passaram, mas o chamado do vazio e do abismo ainda ecoava na mente de Ícaro desde a visita ao edifício Copan. Era um desejo desconhecido, que surgia de forma inesperada e o fazia questionar sua própria sanidade. Em prédios altos, pontes suspensas ou penhascos íngremes, Ícaro sentia um receio profundo de ser consumido por aquele impulso.


No entanto, quando estava em ambientes fechados, como aviões ou elevadores, sentia-se mais seguro. A altura não era um problema, desde que não ficasse exposto ao vazio. Ícaro sabia que precisava lidar com aquele desejo, mas não sabia por onde começar.


Ele tinha uma certeza inabalável: nunca seria uma suicida. A vida, para ele, era um presente precioso, algo a ser valorizado e protegido. Essa visão da vida foi moldada pelos ensinamentos de seus avós e pais, que lhe ensinaram a amar e respeitar a vida em todas as suas formas. Eles lhe mostraram que as lutas devem ser enfrentadas com coragem e resiliência, e que o perdão é uma prática diária que pode trazer paz e serenidade. Embora não tivesse medo de morrer, Ícaro não queria que sua vida terminasse de forma prematura.


No entanto, havia esse impulso estranho que o perturbava quando estava em lugares altos. Era como se o vazio o chamasse, tentando-o a se aproximar do abismo. Mas Ícaro havia aprendido a controlar, e em alguns momentos, conseguiu fazê-lo de forma serena e tranquila. Nessas horas, sentia-se feliz e realizado, como se tivesse conquistado uma vitória sobre si mesmo.


O chamado do vazio e o jovem na ponte


Ícaro sentiu um arrepio ao assistir à reportagem sobre o desaparecimento do jovem que havia pulado da ponte. A imagem do rio cheio e da ponte alta o fez sentir um desconforto profundo. A testemunha ocular relatou que o jovem disse ter sentido um desejo irresistível de pular, de mergulhar no rio. Talvez o fato de ser na água tenha feito com que ele concluísse que não haveria perigo algum, especulou a testemunha.


Ícaro sentiu um nó na garganta ao ouvir essas palavras, pois ele sabia bem o que era sentir um impulso semelhante. Ele se perguntou se o jovem havia sido consumido pelo mesmo chamado do vazio que ele próprio experimentava em lugares altos. A semelhança entre o desejo do jovem e o seu próprio chamado do vazio o fez se sentir mais vulnerável e mais conectado ao jovem desaparecido. Chorou muito ao ver o desespero da mãe do moço na TV clamando pela vida do filho.


Tantos anos se passaram desde a primeira experiência. Ícaro ainda sente na alma o chamado, uma sensação que o persegue quando lembra. A altura do Copan, a cidade imensa, o céu cinzento e o vento frio cortante, é um lembrete constante da sua vulnerabilidade.


Entretanto, a lembrança do olhar de Marília naquele final de tarde é como um bálsamo para a sua alma. Seus olhos azuis profundos o acalmaram naquele dia que já vai tão longe na juventude, como se fossem um refúgio seguro contra as tempestades da vida. Às vezes parece que foi um sonho. Ícaro se sentiu refletido nesse olhar, como se estivesse vendo a cidade e a si mesmo através dos olhos dela. Marília representou o oposto do chamado do vazio, que sempre o atraía para o desconhecido e o perigo. Ela foi o chamado da vida, uma força que o puxou para a luz e para a esperança.


A visita ao Copan foi a última vez em que os dois amigos, Ícaro e Marília, se viram e se encontraram. A lembrança daquele dia ainda é vívida na mente dele. Cada um seguiu seu destino, e as sendas da vida os levaram por caminhos diferentes. Às vezes Ícaro se pergunta: “Meu Deus, por onde andará Marília”, sentindo uma mistura de melancolia e curiosidade da amiga dos anos dourados.


Ele se lembra dos momentos que passaram juntos em um único dia, das conversas, dos sorrisos e das lágrimas na despedida. Eram jovens. Marília é como um vazio que não pode ser preenchido. Um abismo de saudades em um final de tarde no inverno de São Paulo. O Copan continua lá, imponente, foi reformado recentemente. Essa história intrigante Ícaro contou no divã que construiu para si mesmo onde conversa com Deus e com o seu passado.


plugins premium WordPress