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Ela contou essa história anos depois, durante uma farinhada nas bandas das colocações da Cachoeira, Ajuricaba e Cambuquira, no Seringal Carmem, nas redondezas de onde floresceu a cidade de Brasiléia. O local de antigas colocações está deserto, sem uma seringueira sequer para testemunhar a história. É tudo pastagem.
Segundo ela, o fato se passou um ano depois da morte de Virgulino Ferreira, o Lampião. Ele foi morto pela força volante da polícia comandada pelo tenente João Bezerra da Silva na Grota do Angico, Sergipe, em 28 de julho de 1938. A emboscada resultou na morte de Lampião e outros membros do seu bando, incluindo Maria Bonita.
Porém, muitos cangaceiros escaparam. Dadá e Corisco foram se esconder nas Minas Gerais, outros fugiram para o Grão-Pará, Amazonas e Acre. O Magricela chegou por essas bandas depois da morte do capitão Virgulino. Poucos perceberam, a história veio à tona anos depois.
Ela se lembrava de cada detalhe como se fosse ontem. Contou de como aquele homem amarelo, magricela e medroso, um sujeito tísico com olhos que pareciam engolir a própria alma, matou João Valentão numa manhã de domingo no barracão, de um seringal no Alto Acre, após uma noite de forró que ecoava pelas matas e muita cachaça que corria solta.
A noite de sábado começou com música e risadas no barracão para onde os seringueiros afluíam, mas terminou em tragédia antes da missa do domingo ser rezada em campo aberto por um padre chamado José, que fazia a desobriga.
Ela nunca esqueceu o desespero nos olhos de João Valentão quando percebeu o que estava acontecendo. O erro cometido ao subestimar o magricela. O estampido do tiro do rifle 44, papo-amarelo, ecoará para sempre em sua recordação.
João era um sujeito temido, forte, corajoso, metido a valente e gostava de desafiar os outros para uma briga quando tomava uma cachaça açucarada. “Sempre haverá um mais valente”, disse ela suspirando, tomando um gole de café, colocando na boca um pedaço de beiju.
_ Quem pela espada fere, pela espada será ferido”, disse nosso Senhor Jesus Cristo a Simão Pedro”, contou ela, olhando para o infinito naquele final de tarde, como se tivesse voltado à cena da tragédia. Prosseguiu com a história se assentando em um tamborete perto da prensa da macaxeira, por onde escorria o caldo de manipueira. A chapa do forno estava muito quente. Os que faziam a farinhada ouviam atentamente a história. Mandaram até parar o caititu, que fazia barulho, queriam saber o desfecho.
Ela relembrou que o amarelo estava assentado ao pé de uma mangueira que fazia sombra ao redor do barracão. Uma tropa de burros descansava próxima, pelas de borracha espalhadas pelo campo nativo indo até a beira do rio, exalando o cheiro do leite defumado. João Valentão se aproximou triscado pelo álcool com a mente turva pela cachaça cocal e de noite em claro, escorou o rifle ao lado do amarelo, retirando a peixeira da cintura jogando no chão ao lado do rifle. Deu um tapa na cara do magricela amarelo, que rolou para o lado. Ele se levantou e correu em direção à beira do rio. João correu atrás, gritando e xingando.
_ Volta aqui cabra safado, vou de dar uma surra prá largar o choco!
O magricela correu com todas as forças, o coração batendo forte no peito. Ele sabia que precisava se defender, mas não queria se envolver em briga com João Valentão. No entanto, ao dar a volta e correr de volta para a mangueira, ele viu o rifle de João apoiado no tronco da árvore. Sem hesitar, pegou o rifle e puxou a bala 44 para a agulha. João Valentão estava se aproximando, ainda gritando e xingando. O magricela apontou o rifle e atirou, acertando João no peito, bem no coração. João caiu morto em cima do rastro, com um olhar de surpresa nos olhos.
O magricela ficou paralisado, olhando para o corpo de João Valentão. Ele sabia que havia feito algo terrível, algo que mudaria sua vida para sempre. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.”
Agora, ao relembrar a história, ela sente uma mistura de tristeza e reflexão. A vida é curta, e a violência pode levar a consequências trágicas. A história de João Valentão serve como um lembrete de que, por mais forte que alguém possa parecer, sempre haverá alguém mais valente, e que a busca por poder e valentia pode levar a um fim trágico. O cheiro da cachaça ainda parecia pairar no ar, misturado ao aroma da terra úmida da floresta.
Desde então, este seringal lá para as cabeceiras do Acre nunca mais foi o mesmo, e a história daquele homem e de João Valentão se tornou uma lenda, contada nas noites escuras das colocações por comboieiros, seringueiros e regatões.
Depois de matar o João Valentão, o magricela foi se esconder no Seringal Baturité, na Bolívia, protegido pelos coronéis. Soube-se anos depois que ele não era nenhum covarde, mas um cangaceiro da tropa de lampião, um sobrevivente da Grota do Angicos, que veio se esconder no Acre.
Era gente nascida nas margens do rio Pajeú, em Pernambuco. No cangaço, contavam que era conhecido como “Ponto Fino”, em função de sua mira com o papo-amarelo. Casou-se com uma boliviana, gerou filhos e filhas, converteu-se ao evangelho e morreu protestante aos 90 anos.