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Expulsão dos seringais nos anos 1980, religião e ressentimentos: raízes da desesperança de hoje

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Irailton Lima

A moderna ciência do ser, repetindo o que a filosofia vem dizendo há centenas de anos, afirma que o pior dos males sociais é a rejeição, a anulação ou o apagamento do outro. Por isso, uma comunidade que tem seu jeito de ser recusado, anulado ou apagado tende a ser um lugar de pessoas sem alma, sem tônus e sem valor.


Sem validação social, uma pessoa tende a cair na depressão. A depressão individual conhecemos bem: aparece quase sempre por meio de sintomas comportamentais como tristeza persistente, perda de interesse pelo que antes dava prazer, falta de energia, culpa, isolamento social e pensamentos autodestrutivos. Mas, e a depressão social, como aparece?


Essa quase sempre está associada à falta de coesão social, medo, intolerância e agressividade, formação de “ilhas de sentidos” (ou seja, pequenos grupos de identidade) e à perda do respeito por regras básicas de convivência social — você consegue entender, então, por que tanto desrespeito no trânsito e tanto lixo jogado no chão em nossas ruas e praças?


Quando olhamos de forma mais ampla para a realidade social do Acre, é notória a sensação de desesperança, de “depressão social”. Isso tanto pode ser percebido no trânsito ou na sujeira dos ambientes públicos quanto na fila do supermercado em Rio Branco, na travessia da balsa em Rodrigues Alves ou no mercado municipal de Brasileia na manhã de um domingo qualquer. Mas talvez o que melhor exemplifique esse fenômeno seja o fato de que, anualmente, centenas — se não milhares — de jovens acreanos abandonam o estado em busca de novas oportunidades Brasil afora.


Essa é uma realidade que precisa ser vista como sintoma de problemas sociais e de uma crise histórica profunda. Em vez de uma patologia dos indivíduos, é um reflexo do mal-estar de um corpo social que perdeu seu rumo há algum tempo e que, mesmo tateando “pra cá” e “pra lá”, não teve sucesso em reencontrá-lo.


Nesse contexto, as teorias de sociólogos e filósofos como Émile Durkheim, Byung- Chul Han e Slavoj Žižek nos oferecem pistas para desvendar suas camadas e compreender dois fenômenos da vida social e política do Acre com imensa importância: o crescimento das igrejas evangélicas baseadas na teologia da prosperidade e a ascensão eleitoral meteórica da extrema-direita.


A anomia pós-êxodo: o vazio do propósito coletivo

O primeiro e talvez mais potente conceito para entender o Acre de hoje é o de “anomia” do sociólogo francês Émile Durkheim. Em sua obra “O Suicídio” (1897), Durkheim descreveu a anomia como o estado de desregramento social, onde a falta de normas e valores claros deixa o indivíduo sem direção — um estado que ele associava ao desespero e ao suicídio.


A brutal transição, nos anos 1980, da vida nos seringais para as periferias urbanas foi um choque anômico em larga escala. A estrutura familiar e comunitária da floresta, baseada em um modo de vida tradicional e colaborativo, foi destruída. Ao chegar à cidade, os seringueiros e seus familiares — e depois seus descendentes — depararam-se com um vazio existencial: sem serviços públicos mínimos (principalmente ocupação e renda, saúde e educação), estruturas sociais de apoio ou oportunidades de emprego digno, a vida perdeu seu sentido. O sentimento de “não pertencer”, reforçado pelo imenso preconceito advindo da ideia corrente nas cidades acreanas de que “seringueiro” era sinônimo de “atrasado, analfabeto e feio”, e a falta de um propósito coletivo para substituir o que foi perdido tornaram-se a semente dos fenômenos sociais que viriam a seguir — e cujos resultados colhemos hoje. A tristeza e a falta de perspectiva não são, portanto, uma falha pessoal, mas o eco de uma comunidade que teve suas raízes arrancadas.


A Teologia da prosperidade e a tirania do desempenho

É nesse vazio que a ascensão da “teologia da prosperidade” encontra seu terreno fértil. A miséria, a rejeição e a falta de perspectiva são reinterpretadas não como falhas de um sistema social, mas como resultado da “distância de Deus” e da falta de esforço individual, de mérito. Essa lógica alinha-se perfeitamente com a crítica de Byung-Chul Han em “A Sociedade do Cansaço”. Para Han, a sociedade contemporânea nos moveu de um regime disciplinar (baseado na coerção) para um regime de desempenho, onde somos nossos próprios exploradores.


Em uma sociedade que não oferece oportunidades e que é dominada pelo ideal neoliberal de que “comunidade” e “sociedade” não importam, a teologia da prosperidade cria a ilusão de que o poder está nas mãos do indivíduo, que ele é o único responsável pelo próprio sucesso. A pessoa é incentivada a se autoexplorar em uma busca incessante por “vitórias” financeiras e espirituais. O fracasso, nesse contexto, não é mais um problema estrutural, mas uma culpa individual. Como explica Han: “O sujeito do desempenho não se sente mais explorado por um poder externo, mas explora a si mesmo até a exaustão”. A depressão, então, surge como um “cansaço do eu” — o colapso de um indivíduo que se exauriu na tentativa impossível de ser o “vencedor” de uma corrida que nunca foi justa.


A infelicidade como protesto silencioso

Por fim, a análise de Slavoj Žižek nos convida a ver a infelicidade e a desesperança como algo mais do que uma patologia a ser tratada: podem ser uma forma de protesto. Em uma sociedade que nos compele a ser “felizes” e “realizados”, a melancolia e a falta de esperança tornam-se uma recusa subconsciente em aceitar a narrativa imposta. Quando as promessas de sucesso econômico e de uma vida digna se mostram vazias, a infelicidade generalizada reflete uma desilusão coletiva.


Como aponta Žižek, em uma sociedade que nos ordena a sermos felizes e produtivos, a depressão torna-se uma forma de resistência passiva. A desesperança no Acre pode ser, portanto, um protesto silencioso contra uma esfera pública que não consegue cumprir suas responsabilidades. É um espelho do sofrimento de um povo que não consegue fingir o tempo todo que está tudo bem — um sinal de que as soluções oferecidas, sejam políticas ou religiosas, não estão tocando na raiz do problema. A falta de alegria e esperança que presenciamos na maioria silenciosa do Acre hoje não é um fracasso nosso, como acreanos. Antes, é o grito de um povo que, mesmo sem saber, está denunciando as falhas de sua sociedade e as consequências de um processo histórico cruel, injusto e violento — que cobra um alto custo no presente.


E olha que estou mencionando apenas os “êxodos” dos anos 1980 e 1990, dos seringais para as cidades, como resultado da violenta entrada da pecuária no estado. Se incluirmos nessa análise o ocorrido no pós-guerra, quando os soldados da borracha foram abandonados à própria sorte nas matas acreanas pelo Estado brasileiro (que os havia engajado com promessas sabidamente mentirosas, trazendo-os dos interiores do Ceará, do Rio Grande do Norte e da Paraíba), o quadro torna-se ainda mais complexo e desesperador.


O fato é que a desesperança, o crescimento do fundamentalismo evangélico e da extrema-direita no Acre têm causas: estão nas profundezas de nossa história; têm método: a exploração do ressentimento que tudo isso gerou; têm técnica: carregar no ódio que transita fácil e rápido pelos grupos de WhatsApp e pelos posts do Facebook — que são hoje, disparados, as ferramentas que “fazem a cabeça” do acreano.


Como disse no início, uma comunidade que tem seu jeito de ser rejeitado ou apagado tende a ser um lugar de pessoas sem alma, sem tônus e sem esperanças — ou seja, um prato cheio para oportunistas de toda ordem. E o fenômeno da Telexfree nos provou isso há alguns anos!


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