Uma semana depois de Êta Mundo Melhor! irritar ciganos e de a Globo ser acusada de racismo por exibir cenas que representam de maneira negativa os ciganos no horário nobre, a novela das seis inventou uma nova sequência em que a personagem Carmem (Cristiane Amorim) é desmascarada. “Você está manchando a reputação de um povo honesto e honrado”, disparou um policial à farsante.
A cena criada para limpar a barra foi ao ar no capítulo desta sexta-feira (11). O Notícias da TV apurou que ela não constava no roteiro original entregue ao elenco –embora não seja possível cravar que ela tenha sido adicionada depois da polêmica com os ciganos.
Na sequência, Carmem se aproxima de clientes de um bar. “Posso ler a sua mão? Posso ver o futuro?”, pergunta ela. “Ah, te achei, né, vigarista?”, solta uma ex-cliente da mulher. “O que é isso?”, questiona a (agora) falsa cigana. “Onde é que estão minhas joias?”, rebate a vítima.
Carmem se faz de desentendida, e um policial se aproxima das duas. “Mas o que é que está acontecendo aqui?”, intervém o homem da lei. “Ela roubou minhas joias!”, insiste a cliente. “Desconheço esse fato, ela está me confundindo com outra pessoa! Nunca vi essa senhora em toda a minha vida!”, desata a falar a personagem de Cristiane Amorim.
“A senhora conhece essa mulher?”, pergunta o policial. “Sim, muito! Inclusive muito mais do que gostaria! O nome dela é Carmem, ela finge ser cigana para enganar incautos!”, diz a vítima, exaltada.
“Eu sei quem a senhora é. Um dos líderes ciganos esteve lá na delegacia, prestando queixa contra a senhora”, fala o oficial. “O senhor deve estar me confundindo com outra pessoa”, desconversa Carmem. “É a senhora mesmo. Uma golpista, uma vigarista, que está manchando a reputação de um povo honesto e honrado!”, discursa o homem.
Ele, então, chama outro soldado para prender Carmem. “Não! Eu não sou cigana, eu não sou cigana! Eu vejo o futuro, mas eu não sou cigana, não!”, repete a mulher algemada, desesperada. “A senhora está presa por falsidade ideológica, estelionato e furto. A senhora vai responder pelos seus crimes no xilindró, vendo o sol nascer quadrado”, sentencia o policial.
Na página oficial da novela no Gshow, porém, Carmem ainda é descrita como cigana, mostrando que a negativa de sua suposta identidade não constava na construção original da personagem e foi implementada para corrigir o preconceito cometido no roteiro e explicitado pelas entidades. “Cigana. Vai viver com Zulma (Heloisa Périssé) e virar sua parceira em golpes”, informa o perfil da mulher (veja ao lado).
Ciganos denunciam racismo na novela
Na semana passada, as entidades Urban Nômades Brasil, Instituto Cigano do Brasil (ICB), International Romani Union Brasil (IRU) e a Associação Mayle Sara Kali Brasil (AMSK) foram a público em suas redes sociais para condenar a maneira como os ciganos haviam sido representados no folhetim de Walcyr Carrasco e Mauro Wilson.
“Anticiganismo é racismo, e a Globo precisa responder” é o título do comunicado emitido pelas entidades, que direcionaram sua fala à sociedade brasileira, ao Ministério da Igualdade Racial (MIR) e à emissora.
“A novela Êta Mundo Melhor! apresentou, logo em seu primeiro capítulo, uma personagem cigana que entrega um bebê a uma golpista exploradora de crianças. Essa representação não é apenas irresponsável –é racista”, acusaram. “O que vimos não foi arte, foi reprodução de estereótipos cruéis e coloniais, como o mito da ‘cigana que rouba ou vende crianças’. Isso não tem base na realidade, apenas reforça um imaginário que já causou dor, perseguição e exclusão aos povos ciganos ao longo dos séculos.”
“A Rede Globo, como concessão pública, tem responsabilidade sobre o conteúdo que transmite. E o Estado brasileiro tem a obrigação de agir diante da propagação de imagens que marginalizam ainda mais um povo que já luta por reconhecimento, visibilidade e direitos básicos”, apontaram as instituições.
“Nunca roubamos crianças. Somos um povo de cultura, saberes e dignidade. Não queremos ser vilões exóticos de novelas. Queremos respeito”, acrescentaram. “Está na hora de dizer: ‘Não em nosso nome’. Chega de racismo travestido de ficção. Chega de silêncio institucional. Isso é anticianismo. Isso é romafobia. E sim, isso é racismo étnico-cultural.”
Ao final, as quatro instituições colocaram uma lista de exigências depois da exibição da cena, que incluem retratação pública da emissora, nota de repúdio e ação direta do MIR, inclusão real dos povos ciganos nas narrativas nacionais e fim da romantização da dor dos ciganos como entretenimento.