Liberdade para quê, seus pequenos tiranos?

Por
Valterlucio Campelo

A frase mais absurda de que os brasileiros têm notícia nos últimos anos foi proferida ao vivo e em cores no Supremo Tribunal Federal, pela senhora ministra Carmem Lúcia, quando dava seu voto pela inconstitucionalidade de um trecho do Marco Civil da Internet. Ficou ali demonstrado todo o desprezo que suas excelências têm em relação à nação.


Literalmente a frase foi: “Não (se) pode, também, permitir que nós estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos. Soberano é o Brasil, soberano é o Direito brasileiro.” É praticamente a síntese de do autoritarismo. Explico.


Em primeiro lugar, não há como permitir ou não que o ambiente da internet (era disso que se tratava) seja o que de fato é, uma ágora em seu mais vibrante sentido. A ágora era o coração das cidades-estados na Grécia Antiga, funcionando como uma praça pública multifuncional. Era o centro da vida cívica, social, política, econômica, religiosa e cultural. Filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles frequentavam a ágora e contribuíam para o pensamento grego que nos ilumina até os dias atuais. Transplantado para os dias atuais, o cyberespaço é, inarredavelmente, uma ágora universal, menos na China, na Coréia do Norte e em outras ditaduras, claro, e, daqui para frente, no Brasil.


Em segundo, fomos todos tachados de tiranos, que devem ser silenciados ou ter suas vozes parametrizadas pelo STF ou a seu mando, talvez por um “Ministério da Verdade” orwelliano que dirá a todos os brasileiros o que é e o que não é aceitável que circule na ágora digital. É ofensivo, porque nos diminui (pequenos) e atribui a cada um o conceito falso de que agimos de forma opressora, abusiva e cruel.


Em terceiro e, mais grave, esqueceu a excelentíssima que soberano é o povo, de onde emanam as próprias leis e todo o poder conforme afirmam todas as democracias modernas. Descolar o direito da sociedade é, aí sim, estabelecer a tirania. Aliás, quando esse povo atribui a outrem a responsabilidade de representar a sua vontade, o faz em eleições para o parlamento e não para os tribunais.


Além de traduzir o autoritarismo que aquece certos discursos, o caso julgado tem efeitos que precisam ser esclarecidos. Vejamos:


1. Conteúdos classificados como “de ódio” ou “antidemocráticos” podem levar as redes sociais a multas se não forem apagados por elas mesmas, cujos critérios sabe-se lá quais são. A não ser que o STF elabore um manual ou um vocabulário permitido, conceitos como “antidemocráticos” serão subjetivos. Quem disse que democracia é algo relativo?


2. Qualquer postagem crítica ao STF, por exemplo, pode ser derrubada pois caracteriza de pronto um discurso antidemocrático. Existe doravante um ente deificado na sociedade brasileira.


3. Qualquer postagem crítica a uma mulher (“ela tem o nariz chato”, por exemplo) pode ser excluída se a nariguda alegar que se trata de violência de gênero, racista etc. Casos parecidos podem ocorrer com gays (discriminação por orientação sexual).


4. Se, contudo, o alvo de uma afronta for homem, branco, hétero, mesmo que configurem calúnia, injúria ou difamação, a postagem somente será removida por decisão judicial.


Isso para começar. O troço é mais sinistro porque seus efeitos trucidam a liberdade de expressão através da instalação do regime do medo. Os exemplos já estão aí, às nossas vistas. Muita gente foi silenciada e outras o serão por autocensura e por precaução das redes sociais que não quererão levar açoites frequentes. Isso significa que muitos debates legítimos deixarão de ocorrer e muita repercussão deixará de haver sobre fatos verdadeiros, porém inconvenientes para o poder.


Quem o leitor acha que vai ganhar com isso? Seriam a grande imprensa e as redes de televisão que voltarão a dominar todo o debate público, filtrando conforme seus interesses a informação levada à sociedade? Seriam os partidos de esquerda que possuem costas largas nos tribunais superiores e na imprensa?


O certo é que, usurpando prerrogativas do legislativo previstas na Constituição, o STF entre choroso, ofensivo e debochado rasgou o Marco Civil da Internet e terceirizou de modo compulsório a censura. Doravante as próprias redes digitais farão o serviço mais pesado e nós mesmos (quem tem, tem medo) faremos o resto. Isso tudo “em defesa da democracia”. Uma espécie de chicote democrático.


Embalado num discurso malandro de “não estamos legislando”, a Corte simplesmente tomou o lugar do parlamento e reescreveu o que Marco Civil da Internet que em relação aos abusos dizia com precisão – depois de ordem judicial, ou seja, nos termos da lei dita. A partir de agora, qualquer denúncia, judicial ou não, poderá obrigar as plataformas a removerem conteúdos, portanto, a silenciar o indivíduo na ágora digital.


Necessário dizer que parte da culpa se deve a esse Congresso acadelado, que responde a ofertas de emendas e cargos como vira-latas à oferta de um pedaço de carne, e renunciou ao seu papel primordial. O “não vamos gerar uma crise institucional” é como um consentimento ao estupro, então os estupradores dizem “não estamos violando” e seguem o abuso.


Acabou a internet livre, instaurou-se a internet vigiada. Seremos punidos por nossas palavras e isso, como se sabe, não tem travas. Os 213 milhões de brasileiros foram infantilizados, tratados como estúpidos, temos agora que segurar a língua tanto quanto queiram os ONZE “donos da verdade”.


Valterlucio Bessa Campelo escreve às segundas-feiras no site AC24HORAS, terças, quintas e sábados no DIÁRIO DO ACRE, quartas, sextas e domingos no ACRENEWS e, eventualmente, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no VOZ DA AMAZÔNIA e em outros sites.


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