O Brasil se mexeu por dentro. E, mais uma vez, quem registrou isso foi o IBGE com o “Censo Demográfico 2022: Fecundidade e Migração, Resultados Preliminares da Amostra”. O fenômeno da emigração (quando um cidadão deixa um determinado lugar e vai morar em outro no mesmo país) contou com a generosa dose de quase 34 mil acreanos. É muita gente. E isso exige reflexão mais cuidadosa.
Para tentar entender a gravidade do gesto de quase 34 mil pessoas que decidiram sair daqui e ir morar em outro estado, é preciso fazer o caminho inverso: é preciso entrar mais ainda no Acre. É necessário imaginar um núcleo familiar na densa floresta de Boqueirão da Esperança, na divisa com o Peru; ou outra família, por exemplo, na região do Rio Crôa. Esses núcleos familiares têm um modo de vida, tem um jeito de se relacionar com o meio em que vivem.
É uma forma bem diferente da urbanidade: não tem farmácia para comprar dipirona; não tem chocolate da franquia da moda; não tem o mundo mágico, limpo e sem relógio à mostra do Via Verde Shopping. Mesmo assim, milhares de pessoas nascem, crescem, frustram-se, alegram-se, reverenciam a um Deus (ou a vários), criam filhos, netos e, como em todo canto, morrem. Do primeiro choro ao último suspiro, muitos sentiram frio e sentiram calor sem conhecer o sofrimento de ser corinthiano ou vascaíno. É assim no Jordão, no Alto Envira, no Chandless. É assim em todo canto nas entranhas do Acre e de tantos lugares da Amazônia.
Quem já andou por esse Acre sabe que há muitas pessoas que amam estar ali, viver ali. É com aquele rio, próximo daquela samaúma, que é o lugar dela. Não há romantismo nisso. Há uma relação; há um laço. Essa relação chama-se “pertencimento”. É ali que se quer estar e não em outro lugar. Quem já teve oportunidade de viver ao menos uma noite fria de lua cheia nos rios da região de Boqueirão entende o que o editorialista está querendo dizer.
E o que isso tem a ver com o que apontou o IBGE? Tudo. Houve 34 mil quebras; houve 34 mil fissuras na relação de “pertencimento” do acreano com o lugar dele. É evidente que uma família que mora na Floresta Estadual do Chandless, em que um integrante vem para a cidade uma vez a cada dois, três meses, tem uma relação muito mais forte com o lugar em que vive do que um jovem de 29 anos que mora em Rio Branco, recém-desempregado e cansado de ser motorista de aplicativo para garantir o sustento mínimo.
Quem nas cidades vive está mais sujeito a outros encantos. Existe o laço do “pertencimento” também. Pode o indivíduo morar no bairro Laranjal, em Xapuri, ou no João Eduardo aqui na Capital: por mais excluído dos serviços públicos urbanos uma comunidade seja, ainda assim, a relação do indivíduo com o lugar pode ser forte e única. Mas nas cidades, o acesso às informações e aos diferentes modos de vida Brasil afora circulam com mais intensidade. Para quem está vulnerável e no escuro, a luz do quintal alheio sempre brilha mais.
No entanto, a tentativa de entender o “Êxodo Acreano” não pode se restringir à falta de perspectiva de emprego; à falta de circulação de dinheiro porque este ou aquele governo não executa obras públicas; não pode vincular o problema apenas à economia baseada no holerite; ao comércio aquecido de acordo com o pagamento oficial; ao perfil das cadeias produtivas mais consolidadas e concentradoras de renda. Isso tudo importa. Mas isso tudo misturado no paneiro não explica o todo. É apenas um bocado.
A linha de argumentação estritamente econômica é mais cômoda e mais presente nos palanques eletrônicos: eficaz no ataque de adversários políticos com nostálgica e calculada paixão para reencantar antigos eleitores. É, portanto, uma retórica. É uma linha de argumentação verdadeira, mas, ainda assim, é uma retórica.
O que levou exatos 33.970 acreanos para Santa Catarina (13,9%), para o Amazonas (10,1%) ou Rondônia (23,1%) é algo maior do que o ambiente econômico pode explicar. Dificuldades econômicas não são exclusivas das cidades. Há em todo canto. Em Boqueirão, no Chandless, no Iaco, quem percebe que a vida está inviável em uma determinada região muda. Ninguém vive em um lugar por teimosia. O Acre foi formado por essa lógica, aliás.
O problema parece ser mais complexo do que analisar a taxa líquida de migração de -2,86%. Outro dia, causou comoção uma estudante de Medicina da Ufac que deixou claro não gostar do lugar que vive. Falou-se até em nojo, em feiúra. A moça verbalizou o que sente de forma intolerante e preconceituosa? Sim, sem dúvida. Ela está sozinha na empreitada? O que há no modo de vida do Acre que tem desencantado a tantos? É preciso que na sombra da Gameleira tenha o “M” da famosa lanchonete para acalentar os corações mais jovens? O que há na Geografia e na Cultura do Acre que maltrata a tantos por aqui? A pergunta é sincera. Nem sempre um editorial tem resposta para tudo.