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A hipocrisia da ordem e o silêncio da floresta

Fotografia: Bruna Obadowski

Há momentos em que o bom senso exige de nós mais que indignação ou aplausos apressados. Exige serenidade. Exige equilíbrio. A semana que passou, marcada por um episódio lamentável na Reserva Extrativista Chico Mendes, é um desses momentos.


De um lado, uma decisão da Justiça Federal — legítima, como todas as decisões judiciais devem ser até que sejam revistas nos autos. De outro, o cumprimento da ordem por um órgão ambiental da União, o ICMBio. E no meio de tudo isso, a reação agressiva, barulhenta e, por vezes, criminosa de quem, ao invés de procurar a via legal para contestar o que considera injusto, opta por afrontar o Estado de Direito e as instituições.


Roubar gado apreendido em ação ambiental é mais do que um ato de desobediência. É banditismo. E mais grave ainda é tentar transformar esse tipo de prática em símbolo de resistência, como se agredir servidores públicos ou ameaçar agentes ambientais fosse uma forma legítima de protesto. Não é.


Curioso notar que muitos dos que hoje insuflam o enfrentamento às decisões judiciais e ao trabalho técnico dos órgãos de fiscalização são os mesmos que, dia sim e outro também, se apresentam como os paladinos da ordem, da moral e dos bons costumes, os ditos conservadores políticos e reacionários morais.


É hipocrisia que se diz? Acaso estariam igualmente sensíveis ao apelo social se a ordem judicial fosse contra latifundiários privados?
O discurso, claro, é sempre bem ensaiado: falam em defesa das famílias, dos produtores rurais, da “gente humilde” que só quer trabalhar. Mas basta olhar mais de perto para perceber que não passam de vocalizadores de interesses muito bem organizados, disfarçados de defesa popular. A verdade é que o que está em jogo não é a sobrevivência de pequenos criadores ou agricultores, mas a sanha de uma elite rural que, há décadas, se beneficia da destruição sistemática da floresta para ampliar seus negócios e sua influência.


A velha conversa da falta de áreas para produzir não se sustenta em pé. Basta um olhar sobre o mapa acima para percebermos isso. Entre 1985 e 2024, as regiões do Alto e do Baixo Acre, onde fica a Reserva Chico Mendes, viu sua cobertura florestal original ser tragada pela motosserra. A imagem comparativa entre esses dois momentos históricos escancara o que o discurso político tenta esconder: a
floresta está desaparecendo, e o que resta de pé está, em grande parte, dentro da Reserva, já profundamente impactada.


Autor: Dr Eraldo Matricardi. (UNB, 2025)

Assusta o descompasso entre a retórica do “progresso a qualquer custo” e o que nos alerta a ciência. O que se está vendendo como progresso é, na prática, uma aposta suicida: mais desmatamento trará mais escassez de água, mais enchentes, menos biodiversidade, alterações no regime de chuvas e um calor sufocante que já se faz sentir. É o preço de uma devastação feita para que meia dúzia de “produtores” aumentem sua margem de lucro — enquanto o restante da população fica à mercê de um clima hostil e serviços públicos precários.


Porque, convenhamos, o modelo do agronegócio, ao contrário do que repetem seus defensores, não gera riqueza socialmente compartilhada.


Não gera empregos de qualidade, não arrecada tributos compatíveis com o que consome de recursos naturais e infraestrutura pública. Sem serviços públicos decentes e empregos dignos, do que viveria a maioria do povo acreano?


É preciso, portanto, que nos posicionemos com firmeza — mas sem perder a serenidade. Defender um modelo de desenvolvimento sustentável não é crime.


Cumprir decisões judiciais não é tirania. Crime é o roubo. Tirania é o uso da força para impor interesses privados sobre o bem comum. A Amazônia, que é patrimônio de todos, não pode ser refém de uma lógica que transforma floresta em pasto e ordem em capricho.
A história cobrará de todos nós. Que, ao menos, não sejamos cúmplices do silêncio da floresta.


P.S: Ah, o verão está chegando… aquela época em que o céu fica cinza, os pulmões apertam e o cheiro de floresta queimada dá o tom da estação. Mal posso esperar para ver os mesmos que hoje gritam contra Marina Silva e incitam o ódio aos órgãos ambientais pedindo à população “calma” e “paciência” enquanto o Acre vira uma câmara de gás a céu aberto. E se faltar ar, lembrem-se: faz parte do
pacote do progresso. Afinal, respirar é um luxo, não uma prioridade, não é mesmo?!


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