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Do topo ao curral: o que aconteceu com a educação do Acre?

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Binho Marques


No último domingo, o país inteiro assistiu, estarrecido, à matéria do Fantástico que revelou escolas funcionando em currais, sem piso, sem paredes e sem água, no interior do Acre. Como filho da educação pública e ex-gestor educacional, recebi mensagens de educadores, jornalistas e colegas de governo inconformados com a cena que contrasta frontalmente com os avanços que o Estado viveu nas duas primeiras décadas dos anos 2000. Zara Figueiredo, atual secretária da SECADI/MEC, foi uma das primeiras a se manifestar. E a pergunta era inevitável: como o Acre, que já foi referência nacional em qualidade educacional, chegou novamente a esse ponto?


A experiência do Acre entre 1999 e 2010 demonstrou, na prática, que é possível transformar estruturalmente uma rede educacional mesmo em contextos de extrema escassez de recursos. A liderança de Jorge Viana, então governador, foi decisiva para blindar a educação do clientelismo político e estabelecer como princípio inegociável que cada escola fosse tratada com respeito e profissionalismo. Ao enfrentar com rigor o diagnóstico da situação das escolas, da qualificação dos profissionais, da infraestrutura das sedes administrativas e do nível de aprendizado dos estudantes, o governo adotou medidas integradas de gestão, avaliação e formação. O uso do Plano Estratégico Situacional (PES) como metodologia de planejamento e a regra “planeja quem faz” garantiram que cada ação estivesse ancorada em diagnósticos consistentes, responsabilidades bem definidas e viabilidade técnica.


Essas mudanças não teriam surtido efeito sem o engajamento massivo de professores, coordenadores e diretores de escola, que assumiram o protagonismo das transformações. Com o apoio de microrredes pedagógicas e acompanhamento técnico contínuo, lideradas por pessoas como Maria Corrêa, Maria Luiza e Sérgio Roberto, esses profissionais se tornaram líderes locais da mudança, ajudando a construir uma cultura de responsabilidade e compromisso com o direito à educação. A valorização do magistério foi um dos pilares mais sólidos dessa transformação. A política salarial foi estrategicamente estruturada para atrair e reter bons profissionais: o salário inicial de 8,5 salários mínimos para professores com nível superior, em 2001, representava um marco nacional. Isso foi complementado por um programa robusto de formação inicial e continuada, viabilizado em parceria com instituições federais de ensino, que erradicou o fenômeno dos “professores leigos” e garantiu que todos tivessem, no mínimo, formação ao nível médio e, posteriormente, licenciatura.


O contraste entre o reconhecimento nacional que a educação do Acre conquistou no passado, colocada entre as dez melhores do país, e a situação vexatória atual é gritante. Em 15 de outubro de 2007, Dia dos Professores, a capa da Folha de S. Paulo estampava com destaque: “Professor do Acre ganha mais que o de São Paulo”. Naquele momento, um professor acreano com nível superior recebia, proporcionalmente, 39% a mais que um docente da maior e mais rica rede estadual do país. Esse dado, além de simbólico, refletia uma política sólida de valorização profissional, construída com responsabilidade fiscal e prioridade política. Hoje, menos de duas décadas depois, o mesmo Estado ocupa as manchetes nacionais não por seus avanços, mas pelo colapso: escolas funcionando em antigos currais, sem estrutura mínima, material didático ou respeito ao direito das crianças. É a prova cabal de que nenhum avanço é irreversível quando se abandona o planejamento público, se destrói a memória institucional e se substitui o compromisso pela improvisação.


Hoje, ao se deparar com a triste realidade denunciada em reportagens nacionais, é fundamental resgatar os princípios daquela experiência para reagir com firmeza. A crise atual não é fruto da pobreza estrutural do Acre, mas de uma profunda degradação na governança educacional, marcada por populismo, clientelismo, descontinuidade de políticas públicas e abandono de qualquer forma séria de planejamento pedagógico com escuta, compromisso e pactuação. Reconstruir a educação do Acre exige resgatar o planejamento estratégico, o compromisso com a valorização docente, o protagonismo da escola como núcleo da política pública e a articulação permanente com a sociedade. O passado recente mostra que há caminhos viáveis — e que o retrocesso atual não é inevitável, mas precisa ser enfrentado com coragem, inteligência coletiva e responsabilidade pública.


 


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