Rastreabilidade. O nome é feio. Antipático, até. Mas é bom o leitor se acostumar com ele. Estará cada vez mais presente no noticiário pelos próximos sete anos. E, quanto mais se aproxima do vizinho ano de 2032, mais próximo ele estará da rotina de quem lê tanta notícia. E o que diabo essa palavra significa? Dita assim de forma genérica, indica que alguém vai estar acompanhando algo; vai seguir os passos; vai observar. “Rastreabilidade”, portanto, são as condições criadas para que haja observação da trajetória de alguém ou alguma coisa.
Pois bem, atentos e incomodados com os crimes ambientais e trabalhistas cometidos na Amazônia, os procuradores da República (inclusive com protagonismo do MPF do Acre) criaram, em 2009, o programa Carne Legal. O programa é de uma lucidez e de uma lógica impressionantes. O que o MPF queria e continua a querer? O MPF quer que a cadeia produtiva da carne executada na Amazônia e comercializada no Brasil e no mundo respeite a legislação ambiental e trabalhista. Se o leitor apreender esse entendimento, o editorialista já fica satisfeito.
Pois bem. Um dos mecanismos que os procuradores criaram para combater os crimes foi a ideia de “seguir o boi”. Chamaram os frigoríficos com a seguinte retórica: “Meus queridos, vocês são os grandes frigoríficos do país. Você, inclusive, é um dos maiores do mundo [disseram os procuradores, olhando para um dos frigoríficos que estava sentado no canto da sala]… “vocês não vão querer que a carne de vocês seja conhecida no mercado como uma carne que é resultado de desmatamento ilegal, de queimadas e de prática de trabalho análogo ao trabalho escravo, certo?”
A assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi o instrumento que selou o compromisso entre os fiscais da lei e o mercado. E está dando certo. De lá pra cá, estabeleceu-se dois grandes grupos: os frigoríficos que contrataram empresas de consultoria e que se submeteram aos critérios estabelecidos pelo MPF em parceria com uma ONG; e os frigoríficos que, digamos, “trabalharam por conta própria”. E os números foram bons. Na apresentação do Segundo Ciclo Unificado de Auditorias em frigoríficos do AC, RO, MT, AM, PA e TO apenas 4% dos 89 frigoríficos analisados apresentaram irregularidades nas operações.
É preciso reconhecer o acerto da medida iniciada lá atrás, em 2009. O MPF e os parceiros acertaram. Estão no caminho certo. Parte significativa do empresariado compreendeu o processo, se comprometeu a seguir as regras e está cumprindo com o combinado. Essa é a premissa. Mas há ressalvas. Elas são graves e, assim como a iniciativa privada foi compreensiva com o que propôs o MPF, seria de bom tom que os procuradores também tivessem bom senso para reconhecer algumas características peculiares ao Estado do Acre e à pecuária praticada por aqui.
Diferente dos demais estados avaliados, a pecuária do Acre, apesar de produzir carne de excelência, é estruturada por pequenos pecuaristas. São produtores que têm até 100 cabeças de gado na propriedade. Eles formam um pequeno exército de 74% dos pecuaristas daqui. É gente que se especializou na “pecuária de cria”: são criadores de bezerro, dito de forma mais simples. Alguns, entre a propriedade e o local de venda, levam dois, três dias com os animais em pequenos barcos na esperança de conseguir um bom preço.
Não é necessária muita imaginação para perceber que esse produtor é descapitalizado; com propriedade sem documentação; sem assistência técnica ou jurídica; sem regularização fundiária e, com frequência, tem a propriedade com algum tipo de embargo por algum órgão ambiental. Boa parte dos pecuaristas acreanos têm essa realidade como rotina. Os “invernistas” (ou “finalizadores”) fazem parte de uma casta muito seleta da pecuária acreana. Exposta essa cena, pergunta-se: o MPF tem consciência desse contexto? Apesar de produzir uma das melhores carnes do país (senão a melhor), a base da pecuária acreana é frágil, tem pata de barro.
A rastreabilidade por aqui vai deixar um caminho de exclusão e mais pobreza, se não houver uma mudança urgente no foco do MPF. Paralelo às auditorias nos frigoríficos, os procuradores precisam pressionar o Governo do Estado e o Governo Federal para que eles façam o que precisa ser feito: regularização fundiária não é obrigação de pecuarista; revisão de embargo e atualização do Cadastro Ambiental Rural não são obrigações de pecuarista.
A pecuária brasileira já é suficientemente madura e consciente do jogo do mercado internacional. Não é arena para amadores. O próprio resultado do Segundo Ciclo Unificado de Auditorias demonstra que o segmento está disposto ao diálogo e entendeu o processo.
Cabe agora ao MPF reconhecer que é preciso “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade”, para lembrar a lição de um velho e necessário professor. Ou o MPF observa o cenário acreano “na medida de sua desigualdade” ou vai travar a pecuária por aqui. Não é filosofia. É matemática. No caso do Acre, a pata de barro pode ensinar.