Em um cenário de queda de qualidade das graduações de Medicina no país, a oposição e o governo divergem sobre a criação de uma prova para médicos recém-formados poderem exercer a profissão, em discussão no Congresso. Paralelamente, o Ministério da Educação discute uma nova maneira de avaliar a qualidade da formação na área. A formação médica tem sido mais debatida nos últimos anos por causa da explosão da oferta de cursos, que passou de 181, em 2010, para 401, em 2023 — um aumento de 127% em 13 anos.
Enade: Metade dos cursos à distância avaliados em 2023 não atingiu patamar de desempenho satisfatório
O crescimento do número de cursos está ligado ao aumento do interesse do setor privado, que movimenta cerca de R$ 26,4 bilhões por ano, o equivalente a 40% do mercado de ensino superior. Mas qualidade dessas vagas tem atraído críticas. Especialistas apontam que as novas instituições não têm garantido estrutura de laboratórios adequados, professores preparados e até vagas de estágio suficientes e de qualidade. O Exame Nacional de Desempenho Estudantil (Enade) de 2023, divulgado na semana passada, mostrou que os cursos de Medicina pioraram em relação à última avaliação, feita em 2019. Há dois anos, 20% não atingiram patamar considerado satisfatório. Quatro anos atrás, essa proporção era de 13%.
— Estamos preocupadíssimos com a formação médica no Brasil. Está um horror. Se o médico não é bom, ele piora o problema do paciente e desperdiça dinheiro — avalia a presidente da Academia Nacional de Medicina Eliete Bouskela. — Já temos mais cursos na área do que os Estados Unidos e a Índia — compara.
Na semana passada, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado voltou a discutir a criação de um Exame Nacional de Proficiência em Medicina. A proposta prevê que a prova seja aplicada a recém-formados da mesma maneira como é feita a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O exame impediria os reprovados de atuar de qualquer maneira na profissão. O responsável pelo teste seria o Conselho Federal de Medicina (CFM), um dos principais apoiadores da medida. A ideia tem apoio entre parlamentares de oposição ao governo Lula.
Gráficos comparam qualidade e crescimento dos cursos de Medicina no país — Foto: Arte O Globo
— O exame pode funcionar como um filtro para garantir que apenas profissionais capacitados entrem no mercado, incentivando as faculdades a revisar seus currículos, melhorar a infraestrutura e investir mais na qualidade para que seus alunos tenham bom desempenho. Os cursos de Medicina já passam por avaliações periódicas rigorosas (como o Enade e a supervisão de vagas). O exame nacional viria para complementar essas ações — defende o senador Dr. Hiran (PP-RR), relator do texto debatido.
O projeto já passou na Comissão de Educação da Casa e passaria por votação terminativa no CAS — dali seguiria direto para a Câmara, sem passar pelo plenário. Mas a senadora Teresa Leitão (PT-PE) conseguiu aprovar uma audiência pública para debater o novo exame. A atuação dos petistas reflete a posição do governo, que não partiu para o enfrentamento contra o teste, mas também não apoia a ideia.
“Não parece razoável delegar a avaliação dos egressos dos cursos de graduação em Medicina ao Conselho Federal de Medicina, em detrimento de todo o processo formativo dos estudantes e de todo o arcabouço normativo que rege a autorização para abertura e funcionamento dos cursos de Medicina”, argumentou a senadora, no ofício em que pediu uma audiência pública para debater a medida.
Presidente do Conselho Regional de Medicina do Mato Grosso, Diogo Sampaio defende que a responsabilidade do MEC é com os alunos, e que os egressos das faculdades devem ser avaliados pelos conselhos, como no caso da OAB.
— O objetivo da prova é garantir que o médico que vá atender a população tenha o mínimo de conhecimento na área para a segurança dos pacientes — argumenta.
O presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), Sandro Schreiber, reconhece que há um consenso na sociedade de que é preciso melhorar a formação em Medicina no Brasil. No entanto, defende que o modelo defendido pela oposição não resolve esse problema.
— Avaliar é importante, mas deve ser feito de forma seriada, antes da formatura. Hoje, a escola ganha uma fortuna de dinheiro e nada acontece. A ideia é que todo esse processo seja feito dentro do curso, de modo que não recaia apenas nas costas do estudante e que o diploma só seja emitido no momento que se considere esse médico apto — afirma Schreiber, professor do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
A proposta do presidente da Abem é em parte similar à prova de proficiência já aplicada nos Estados Unidos (que é seriada) e em parte semelhante com o exame que será aplicado no Reino Unido pela primeira vez este ano. No modelo britânico, o aluno continuará vinculado à universidade se não tiver desempenho suficiente, até conseguir a aprovação.
O professor da Furg lembra que o Brasil vive problemas de distribuição de médicos. De acordo com o CFM, o país tem quase 600 mil profissionais, mas mais da metade está no Sudeste, e apenas 8% na Região Norte. Segundo Schreiber, há o risco de que a diminuição de formados agrave esse problema.
— É fácil imaginar que as cidades do interior vão contratar essas pessoas reprovadas para fazer exercício ilegal da Medicina — projeta.
Rigor na fiscalização
Enquanto isso, o Inep formou uma comissão de especialistas para reformular a avaliação dos cursos superiores e aumentar o rigor nos aspectos analisados, começando pela área da Saúde. A intenção é verificar atividades práticas, laboratórios, integração com sistemas de saúde locais e a inserção dos estudantes nos diferentes cenários de prática (atenção primária, secundária e terciária).
Segundo o instituto, as primeiras propostas das comissões das áreas de Saúde, Educação e Engenharia já foram finalizadas. “Os instrumentos passarão por revisão interna e serão publicados após a definição do novo marco regulatório da EaD”, afirmou o Inep, responsável pelas avaliações educacionais do MEC, em nota. “A consulta pública está prevista para ser realizada até o fim do semestre, após a entrega das versões finais das propostas”.
Diferentemente do Exame Nacional de Proficiência em Medicina, o aumento da fiscalização é apoiado até pelas instituições de ensino, que se opõem à prova. Mas Sampaio argumenta que o MEC já poderia punir graduações com os instrumentos que possui.
— Hoje os cursos já são avaliados, vão mal e não acontece nada — conclui.
Com informações do site OGLOBO