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Lagarta…

Foto: Freepik

No princípio era o ovo, o ovo se fez lagarta, que se fez borboleta… há uma casulo para todos, um casulo de Deus.


Refletindo sobre minha ida até a Fundação Hospitalar para visitá-la em seus últimos dias de vida, fui inundado por lembranças do momento em que a encontrei pela primeira vez. Quando a vi me fez recordar a personagem Luzia-Homem do romance de Domingos Olímpio (1903), dado a sua compleição física. Era uma mulher forte fisicamente. Residia o espírito de Diadorim, do Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (1956). Sara, seu nome era Sara, tinha um filho de um casamento desfeito, vivia com uma companheira.


Foi no início do novo milênio, o ano 2000. Naquele tempo, eu era o rosto do programa ‘Bom Dia Rio Branco’, transmitido no canal oito pela TV Rio Branco, uma afiliada do SBT. Era uma época mais simples, antes do advento das redes sociais como Instagram, Facebook ou WhatsApp.


Foi ela quem entrou em contato com nossa emissora de televisão, propondo que contássemos a história de uma mulher que vivia em condições de extrema pobreza, acomodada apenas em um barraco de lona. Essa mulher, acompanhada por seus cinco filhos pequenos, abandonada pelo marido, lutava cotidianamente contra adversidades, incluindo a falta de alimentos, vivendo em condições abaixo da dignidade.


Após seu contato atendemos o pedido e embarcamos na jornada de produzir a matéria, com o objetivo de lançar luz sobre a dura realidade que esta família enfrentava. Através do poder da reportagem, aspiramos a tocar o coração do público e inspirar ações de solidariedade.


Ao refletir sobre a reportagem, percebo o quão profundamente ela tocou o coração de toda a cidade. A história da mulher e seus cinco filhos, que receberam assistência significativa – desde um lar para viver até diversas outras formas de ajuda – ressoou fortemente em cada alma.


Além disso, aprofundou-se um vínculo especial entre eu e ela, a alma generosa que sugeriu a reportagem. Movida por uma intensa empatia e uma sensibilidade sem par, utilizava essas qualidades não apenas para aliviar suas próprias angústias e medos, mas também para estender uma mão a quem precisasse. Para ela, a ajuda e o socorro eram mais que gestos de bondade, eram atos de devoção ao criador.


Nasceu entre nós uma amizade tal como descrita por Platão: uma harmonia recíproca que leva duas almas a ansiar pelo bem-estar uma da outra. Trata-se de uma jornada incessante de crescimento, englobando tanto a sabedoria quanto a formação do caráter. Essa amizade brota da bondade e da empatia, nutrida por momentos memoráveis e uma estima genuína. A amizade, tal como retratada, é um espelho da humanidade em sua essência mais pura.


Enquanto o tempo se desdobrava e a vida tecia suas tramas complexas, ela começou a fazer da minha casa um porto frequente. Comecei a conhecer suas virtudes, traços de luz em sua personalidade, mas também seus vícios, as sombras que a acompanhavam.


Em uma esquina próxima de onde vivia, havia um bar que atraía um punhado de almas locais. Ela batalhava contra a maré da dependência de álcool e drogas. Havia momentos em que ela desaparecia por dias e eu sabia, com um coração pesado, que ela estava lá, imersa em um mar de esquecimento com seus camaradas. Nunca questionei, nunca a julguei, nunca a rejeitei.


Em uma dessas reviravoltas da vida, uma das figuras presentes naquele bar encontrou refúgio no cristianismo, tornando-se um pastor e um de seus amigos mais próximos, sem nunca lançar-lhe um olhar de condenação.


Durante esses períodos de sua ausência, um vazio se instalava, mas eu permanecia em silêncio, esperando pacientemente por seu retorno. Sempre recebia seu regresso não com julgamentos, mas com a quietude de quem compreende.


O casulo…


No entanto, foi durante a campanha eleitoral de 2008 que nossas vidas foram abaladas de forma inimaginável. Estava me candidatando à reeleição para vereador. Se não me falha a memória, foi cedo da tarde de uma quinta-feira quando o telefone tocou. Do outro lado, uma voz disse:


– Alguém sabe onde Sara está? Precisamos encontrá-la urgentemente, pois seu filho de apenas 12 anos ingeriu veneno para ratos e agora luta pela vida no Pronto Socorro.


– Meu Deus! Meu Deus! Exclamei, aterrorizado. Entramos em pânico enquanto tentamos localizá-la.


Naquele momento, as eleições pareciam irrelevantes. A busca pela mãe do menino que agonizava no PS tornou-se nossa prioridade. Fizemos ligações incessantes. A luta pela vida de seu filho agora era também nossa luta. Recebi outra ligação, desta vez era um dos membros da nossa equipe. Ele me disse:


– Conversei com ela, informei que médicos e familiares a aguardavam no Pronto Socorro devido à tentativa de suicídio de seu filho. Inquieto, questionei:


– Ela foi para lá?”


– Não, ela afirmou que não era médica e que não poderia ajudar seu filho no hospital. Temendo o pior, indaguei novamente:


– Então, para onde ela foi?


– Ela mencionou que precisava ter uma conversa com Deus. Disse que Deus a estava chamando. Correu para uma igreja aberta aqui no Bosque e está lá, ajoelhada em oração. Com aquele gesto ela acabava de salvar a vida do filhinho. O seu exemplo de fé nos contagiou a todos com grande emoção. Deus a havia presenteado com os dons da graça e da fé devolvendo-lhe o filho salvo por mãos abençoadas no Pronto Socorro. A partir deste tempo ela se tornou reflexiva, mudou hábitos, e buscou na espiritualidade a paz que precisava. Abandonou completamente os vícios de álcool e drogas.


Não conhecemos os desígnios nem os caminhos de Deus. Passado mais de um ano desse episódio veio uma triste notícia. Ela estava com câncer no útero. Passou por uma cirurgia, ficou curada. Depois de mais algum tempo, o tumor surgiu no cérebro, mas ela continuava lúcida, cheia de fé e de esperança. A doença não diminuiu sua força, mas a fez brilhar ainda mais. Enfrentava cada dia com coragem e fé, demonstrando uma capacidade incrível de superação.


Foi sob estas circunstâncias que ela me chamou para ir visitá-la na Fundação Hospitalar, onde estava internada. Estava ansioso, sem saber ao certo o que dizer. Preparei palavras de conforto, frases e versículos bíblicos decorados.


Saindo do casulo…


Fui guiado até uma enfermaria que ela compartilhava com outros pacientes. Ao me avistar, levantou-se de sua cama e anunciou alegremente:


– Meu amigo veio me visitar! O brilho nos seus olhos, a alegria de me ver levarei para sempre. Conversamos um pouco, sondei seu estado de espírito e lhe disse:


– Querida amiga, quero te dizer com a certeza de que não há razão para temer a doença, nem a morte. Com o afeto de uma mãe para com o filho que ama, ela me interrompeu.


– Quem disse que estou com medo, Astério?”, perguntou sorrindo e espalhando um ar de leveza e alegria, rompendo o clima de seriedade e reflexão no qual eu estava envolvido. Com a maior simplicidade do mundo ela me disse.


– Meu amigo, eu não tenho medo. O Homem lá de cima está comigo, Jesus está aqui, não há o que temer. Estou feliz pela sua presença ao meu lado. Relembramos alguns momentos, me disse que o filho estava muito bem.


Conversamos por um tempo, nos despedimos sem lágrimas, sem clima de separação ou tragédia. Fui embora na certeza de que nunca mais a veria nessa terra. Pouco tempo depois, ela emergiu do casulo para voar para Deus nos altos céus.


Por uma razão que desconheço ela me faz lembrar uma borboleta rosa. Seu corpo, o corpo de Luzia-Homem e o espírito de Diadorim ocultavam uma alma sensível ao Espírito de Deus. A vida nos oferece esse processo de transformação, a metamorfose, felizes os que são agraciados com essa bênção.


Ela ascendeu ao infinito, carregando consigo a leveza, a alegria, a compaixão e o amor que sempre emanou. Gosto de pensar que ela está no jardim secreto de Deus, no Paraíso, acrescentando um toque de encanto à eternidade. Seu filho agora é um homem forte, saudável, inteligente… como ela queria que ele fosse.


“Na casa de meu Pai há muitas moradas, se não fosse assim eu vos diria”. (Jesus)


Esse texto não tem a intenção deliberada de ofender ninguém.


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