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Ao mesmo tempo, em que transcorria a esperada decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, de aceitar a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, cumprindo assim o rito para afastá-lo da política, o que seria, nas palavras de seus algozes uma “defesa da democracia”, intensificou-se na opinião pública a crítica ao modo como são tratados os manifestantes de 08 de janeiro, pondo em cena a Débora Rodrigues, uma mulher de 38 anos, cabeleireira, casada, mãe de duas crianças, mantida no cárcere com pena de 14 anos, juntamente com muitas outras inocentes, apenas por pintar de batom duas palavras antes ditas em tom de deboche por um ministro do STF. “Perdeu, Mané!”, uma frase que denota um assalto na rua, foi dita na rua por um ministro da mais alta corte contra um cidadão que ousou lhe perguntar algo. A rigor, faz todo sentido, mas a punição veio mesmo foi para a jovem senhora desavisada de que o sistema é bruto.
Num recuo tático, apenas para esfriar os ânimos, o Torquemada do século XXI resolveu em seguida transformar a prisão da Débora em prisão domiciliar, porém com todos os controles mais absurdos. Na prática, trocou uma cela na prisão por uma cela na sua rua. Os cadeados foram substituídos por uma tornozeleira.
Entre muitas reflexões causadas por esta quadra da vida brasileira, me veio a ideia de que o Ministro Alexandre de Moraes, a despeito de sua personalidade peculiar, tendente à psicopatia (ver
AQUI), em certa medida assume a ética utilitarista proposta pelo filósofo britânico do século XVIII, Jeremy Bentham. Para esclarecer, utilizemos o famoso “dilema do bonde”, discutido pela filósofa britânica Philippa Foot em 1967. Trata-se do seguinte:Imagine um bonde desgovernado que está prestes a atropelar cinco pessoas amarradas nos trilhos, e que você está em uma alavanca que pode desviar o bonde para outro trilho, onde há apenas uma pessoa amarrada. Você deve puxar a alavanca e sacrificar uma pessoa para salvar cinco?
Alexandre de Moraes, movido pela ideia de que é ético agir para mudar o curso da história (o trem), não titubearia em mover a alavanca e matar quem não iria morrer, para salvar um maior número de pessoas. Na mente dele, prender, torturar e afastar da política um pequeno número de pessoas (quase 2.000) inocentes, se justifica pela convicção de que isso evita de alguma forma um mal maior – “uma ditadura que seria implementada pelo Bolsonaro no Brasil com milhões de vítimas”. Esse é o utilitarismo de Bentham abraçado por Moraes, ou seja, ele pensa nas consequências do ato ou omissão e mede o resultado previsto, definindo a partir daí a própria ação.
É muito provável que atualmente o utilitarismo seja amplamente majoritário na sociedade, fomos treinados na eficiência, na relação benefício/custo, nos prós e contras, na maximização do lucro etc., então, somos levados a concordar com Alexandre de Moraes. Não foi assim que agiram os militares em 1964? Deram um golpe para evitar uma ditadura que viria muito mais violenta, assassina e cruel. Ou não? A esquerda jamais concordará com o utilitarismo dos generais, embora forcem a barra para que hoje ele seja adotado sem freios e sem razão para atropelar a direita.
Ocorre que, no caso brasileiro, o dilema é falso. Não existem as cinco pessoas a serem atropeladas pelo trem, não há golpe a ser executado, a democracia não está sob ataque, o martírio daquelas pessoas na praça dos três poderes não salvará a pátria de uma ditadura, tudo isso é uma gigantesca falácia para num utilitarismo fantasioso, eliminar o inimigo – o conservadorismo, e acelerar a transformação da sociedade no sentido do progressismo. No Brasil, o operador da alavanca criou um embuste e o propagou para que sirva de álibi ao seu intento perverso.
Outro grande filósofo do século XVIII, o alemão Immanuel Kant, publicou em 1781 sua obra-prima “A Crítica da Razão Pura” (pouco anterior à obra de Bentham), que até hoje é leitura obrigatória a quem adentra o mundo da ética. No cerne de sua filosofia encontramos o Imperativo Categórico, uma lei moral incondicional e universalmente vinculante que Kant acreditava que a razão humana podia descobrir. Ao contrário dos imperativos hipotéticos, que dependem de desejos ou objetivos específicos, o Imperativo Categórico é absoluto e se aplica a todos independentemente de suas inclinações pessoais. A deontologia de Kant enfrenta o consequencialismo.
Aplicado ao “dilema do bonde”, o imperativo categórico de Kant tenderia a impedir o operador de mover a alavanca, pois para ele a vida humana é sempre um fim em si mesmo e nunca um meio para qualquer objetivo. Além disso, impõe obrigações morais essenciais e fundamentais que devem ser respeitadas em todos os momentos e circunstâncias, independentemente dos objetivos ou da utilidade percebida. Sua lógica seria que puxar a alavanca implicaria usar a pessoa no trilho secundário como um meio para salvar as outras cinco, o que violaria o imperativo categórico. Para Kant, independente da decisão, o agente terá a responsabilidade da ação, dessa forma, não agir causaria menos responsabilidade moral do que agir.
Trazendo para a decisão de Moraes, vale dizer que o imperativo categórico imporia a omissão, ainda mais porque se trataria de uma hipótese que, aliás, o ministro teima em provar pelos mais absurdos abusos contra a lógica, o bom senso e a própria constituição federal, entre eles a desobediência ao devido processo legal, a coação de testemunhas, a pessoalidade dos julgadores, o acúmulo de funções, a negativa de acesso total aos depoimentos e assim por diante.
Não faço a menor ideia do tempo que suas excelentíssimas gastam com a consulta a princípios éticos. Sei que deveriam dedicar algum. Presumo, porém, que mesmo intuitivamente, as pessoas comuns sabem que essa decisão de processar com julgamento já definido os manifestantes de 08 de janeiro, bem como o ex-presidente Jair Bolsonaro, é toscamente utilitária, serve para atingir um objetivo que se esconde na mentira de um golpe impossível. A confraria luloalexandrina se escuda num utilitarismo fajuto para justificar sua vileza. Assim nascem as ditaduras.
De Kant, provavelmente Alexandre de Moraes ouviria que a moralidade não se baseia em cálculos de resultados, mas sim no respeito à lei moral universal e na dignidade humana. Kant lhe diria que aqueles inocentes de 08 de janeiro possuem dignidade intrínseca e devem ser tratados como fins em si mesmos e não como meios para alcançar outros fins, e que o seu utilitarismo, em nome de uma suposta felicidade coletiva, leva à instrumentalização dos indivíduos, desrespeitando sua dignidade, sem contar que por trás de tudo há uma fraude monumental.
Valterlucio Bessa Campelo escreve às segundas-feiras no site AC24HORAS, terças, quintas e sábados no DIÁRIO DO ACRE, quartas, sextas e domingos no ACRENEWS e, eventualmente, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no VOZ DA AMAZÔNIA e em outros sites.