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O desmando completo e as luzes da cidade

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Editorial ac24horas

Poucas coisas chamam tanto a atenção do leitor, do cidadão e do eleitor quanto o tema Segurança Pública. Leitor, cidadão, eleitor: tudo reflete no mesmo bicho. Mas cada um tem suas nuances. O leitor, por exemplo, é um bicho mais manhoso, detalhista. Gosta de pegar o redator no contrapé. O cidadão tem lá as suas manhas também: tem trejeitos de exigente e reivindicador. O eleitor (que compromete a vida da tropa toda) é o mais vulnerável a paixões. E sobre Segurança Pública, é o eleitor que sempre fala mais alto. É a percepção dele que prevalece. É a decisão dele que dá o rumo das coisas.


Em qualquer pesquisa de opinião, o eleitor abordado não tem dúvidas: coloca o tema Segurança Pública entre os primeiros colocados. No entanto, se o pesquisador fizer um recorte mais detalhado, cometendo a ousadia de fazer uma abordagem qualitativa, e quiser esmiuçar o entendimento sobre “Segurança Pública”, o resultado da pesquisa provavelmente não surpreenderá.


A percepção será de fortalecimento das forças policiais; de valorizar o policiamento ostensivo; de defender a lógica do “bandido bom é bandido morto”; de críticas a uma suposta “frouxidão das leis” e das audiências de custódia. Claro que não poderia faltar a frase “a polícia prende e a Justiça solta”. Tem também a cereja do bolo: a defesa da pena capital. No geral, é isso. O universo de argumentações transita por esses conceitos e por essas ideias. Quando se fala sobre “Segurança Pública”, a diversidade do entendimento varia pouco além dessa sequência. Talvez um ou outro menos desatento trate de algum detalhe fora desse conjunto.


E a cena Política, atenta a esse eleitor, sabe bem como manter o debate nesta limitada ciranda. Periodicamente, são apresentados viaturas, armas, munições, coletes, drones, equipamentos sofisticados que fazem leitura facial. O instrumental é o mais variado. Microfone aberto e o tal do “investimento em Segurança Pública é uma prioridade deste governo” é repetido na boca de todo apressado que discursa. E o eleitor ali ao lado, ouvindo e vendo tudo. Governante após governante; eleição após eleição. A cantilena é a mesma.


O eleitor envelheceu ouvindo isso. Ele é um tratorista, um vendedor de picolé, um agricultor, um serralheiro, um marceneiro, um padeiro, um balconista, um professor e até mesmo um jornalista. Governo após governo e a tal da “Segurança Pública” tem o brilho do giroflex como referência. É a única luz que é apresentada ao eleitor.


E para complicar ainda mais, em conceituados programas de televisão por assinatura, há “teóricos” de grandes universidades brasileiras relativizando a relação entre miséria; pobreza; exclusão social; corrupção; falta de planejamento de políticas públicas; falta de eficácia das ações de governo com violência. É como se a violência surgisse de geração espontânea. Para alguns analistas, é necessário ser dito de forma direta: “como é dura a vida de um acaciano dos trópicos!” Enquanto a politização do tema contamina os ambientes mais sofisticados, a vida real se impõe.


A semana que passou foi traumática para quem vive em Rio Branco e tem o mínimo de sensibilidade. O Caso Yara deveria ser observado como um problema coletivo. Dependente química, a mulher foi assassinada, executada em via pública por integrantes de facção que foram informados de que a mulher havia matado a filha mais nova de dois meses e meio. E esta criança, supostamente, estava em um saco que ela teria jogado na mata.


A perícia, que não soube diferenciar um corpo humano do corpo de um cachorro, induziu a imprensa ao erro e às manchetes desgraçadamente dramáticas. Só constatou a diferença com a ajuda dos holofotes do IML. E para piorar a situação, a criança que foi confundida com um cachorro está desaparecida. Até o momento, não se sabe onde está. É um espetáculo incomum de incompetências do poder público, em todas as esferas da administração.


O intrigante é que ao conversar com os comandos e gestores que decidem os rumos das coisas na área, a impressão que se tem é de que o Estado tem o domínio da situação. É uma versão da realidade que não se sustenta em pé. O Estado não tem domínio algum. No Cidade do Povo, a polícia e o IML entram porque se houver demora no recolhimento do corpo a fedentina fica insuportável. Não fosse a podridão das carnes, as “forças de segurança” teriam outro roteiro. Nem mesmo diferenciar uma criança de um cachorro o Estado foi capaz de mostrar competência.


Yara Paulino tinha outros dois filhos: um de dez anos e outro de dois anos. Criava-os do jeito dela, pedindo de casa em casa e se desgraçando no vício sempre que podia. São crianças com olhos e barrigas já calejados. Provavelmente, vão crescer iluminadas pelas luzes do giroflex. Foi a única luz que a cidade lhes dispôs a dar até o momento.


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