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O espectro do crime e a ignorância da própria casa

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Editorial ac24horas

É mais perigoso viver na Amazônia Legal do que em qualquer outra parte do Brasil. E quem afirma isto é o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Vários fatores justificam a afirmativa, mas um em especial deveria deixar as autoridades acreanas de orelhas em pé.


O Conselho de Controle de Atividade Financeira (Coaf), responsável pela coordenação do sistema de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, mostra um número assustador que põe o Acre em uma berlinda perigosa. O número de Relatórios de Inteligência Financeira, documentos que apontam possíveis crimes de lavagem de dinheiro, aumentou no Acre 1.012,5% no período de 2016/2023. Arredondando, foi multiplicado mais de 11 vezes em oito anos.


Isso pode ser um indício de que o Acre esteja sendo uma grande lavanderia de dinheiro que tem origem em atividades ilícitas das mais variadas, incluindo o narcotráfico. É um tipo de crime que não está, diretamente, ligado ao que é noticiado nos programas policiais da tevê ou em sites. A coisa é mais refinada.


A Amazônia Legal como um todo tem sido palco para esse tipo de crime, apontam os dados do Coaf. Os Relatórios de Inteligência Financeira enviados para autoridades dos estados da Amazônia Legal corresponderam a 21,8% do total em 2023. Isso é muita coisa. No período de 2016-2023, a variação foi de 300,3%. Nos demais estados do país, a variação foi de 77,2%. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública calcula, portanto, que os Relatórios de Inteligência Financeira produzidos pelo Coaf cresceram três vezes mais na Amazônia Legal. E isso deveria merecer uma reação mais qualificada por parte do poder público.


A metodologia já demasiadamente massificada do “follow the money” (em inglês de padaria: “siga o dinheiro”) é uma estratégia que precisa ter os instrumentos aprimorados no Acre. As ações integradas das redes institucionais como a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro precisam ser fortalecidas. As famosas “emendas parlamentares” precisam começar a observar a necessidade de se ter, por exemplo, uma Polícia Civil melhor treinada e aparelhada.


Os dados do Coaf são um tapa na cara da sociedade. Revelam que a criminalidade pode estar travestida de sofisticadas formas: em lojas caras sediadas em cidades com povo empobrecido; em atividades do setor produtivo; em serviços dos mais diversos: um cenário muito diferente do que registram os repórteres que acompanham os dramas humanos em delegacias e bairros da periferia de uma cidade como Rio Branco, por exemplo.


As autoridades em Segurança Pública do Acre mal iniciaram a comemoração por conta da redução do número de Mortes Violentas Intencionais e já recebem uma sirene do Coaf nos ouvidos.


Repare o leitor nos números envolvendo o crime organizado no país. Em 2022, o crime organizado movimentou R$ 146,8 bilhões no mercado de combustíveis, ouro, cigarros e bebidas. Só com esses quatro produtos. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, isso representa 42% do total, calculado em R$ 348,1 bilhões. A cifra do comércio de cocaína é estimada em R$ 15,2 bilhões (apenas 4% do total).


O espectro de atividades criminosas é tão amplo que, só a partir dele, é que se percebe como o tráfico de cocaína passa a ser um componente coadjuvante, tamanho o número de atividades ilícitas. O cenário é tão complexo que os estudiosos da geografia do crime na Amazônia Legal já criaram até a expressão “uma nova corrida do ouro”, para expressar como a extração do metal cresceu na região nos últimos anos.


A Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), o imposto pago pela exploração do ouro, aumentou 406,7% no Estado do Pará. O dado refere-se ao ano de 2022. Na Amazônia Legal (exceção de Roraima que não recolheu o tributo), no período de 2018/2022, os estados que têm extração mineral aumentaram a arrecadação desse imposto em 294,7%. Isso são dados formais. São números da extração legal, autorizada, carimbada. Quem garante que a extração ilegal do metal não esteja sendo “lavada” aqui no Acre, um dos estados que se orgulha de sempre ter o setor de serviços como destaque no comércio?


Só investigações muito refinadas poderiam acompanhar esse rastro do dinheiro criminoso. As forças de Segurança Pública têm encontrado dificuldades em acompanhar a capacidade de se transmutar (ou de se camuflar), típica do espectro do crime. Para lembrar uma imagem muito ouvida dentro de guarnições, nas conversas sobre Segurança Pública entre soldados e sargentos: a polícia não está enxugando gelo. Ela não está sabendo nem onde fica a cozinha da casa.


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