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… procuro dentro de mim um novo caminho que me leve ao princípio onde está o fim. Tudo termina onde começa: no coração da terra…. É um ciclo infinito. Cada fenecimento é uma semente plantada no solo fértil, aguardando o momento certo para germinar e iniciar sua nova jornada.
O tempo tem o poder de desbotar antigas marcas na minha memória, independentemente das cicatrizes profundas que deixou. Os fragmentos das minhas experiências parecem desconexos, e me pergunto, como posso uni-los, se a cada estação, surge uma nova versão?
Houve um período em que meu coração permaneceu cativo da primavera, a qual roubou e aniquilou sonhos de juventude. O amor faz de nós náufragos em uma ilha deserta. Passei a me sentir confortável no frio e nos dias nublados mesmo amando um céu claro azul de sol e uma noite estrelada acampado em uma praia do rio Acre como nos dias antigos.
A realidade me torna cético e crente na iminente tempestade de poeira que se aproxima a cada celebração dos meus anos. Vejo-a, não como uma ameaça, mas como uma catarse necessária, varrendo o velho para dar lugar ao novo. Assimilo a tragédia.
E continuo minha busca incessante neste labirinto, esperando que a morte não me encontre antes que eu ache resposta para perguntas sobre o além que nunca serão respondidas. Quanto a isso, esbarro sempre em Deus. Ela pode chegar no outono, quando as folhas caem e são levadas pelo vento, me levará consigo.
Às vezes me pego numa angústia profunda. Uma fusão de medo, euforia e alegria contida diante do imenso abismo da eternidade. Essas sensações foram experimentadas pela primeira vez na minha infância, enquanto cruzava o caminho que margeava o rio que descia para o vale indo à casa dos meus avós no Seringal. (Ah o rio, eu queria ser, eu era o rio. Sempre imaginava o que poderia existir no fim. Quem estaria lá? Em sua – e minha — vasta extensão, cada curva revelava um novo mistério. Em cada estirão, remanso e corredeira, um suspiro de liberdade da alma aprisionada ao corpo querendo libertar-se).
Era um medo infantil, que se transformava em surtos de uma euforia melancólica, comparável aos êxtases de um dia terminando nas noites cálidas de verão.
Envelheci criança quando, pela primeira vez, me dei conta de que a eternidade poderia ser resumida num pássaro morto. Dediquei dias observando sua decomposição, regressando ao que era antes de voar pelos céus. Vivo e vibrante, agora apenas um conjunto de matéria voltando à terra, fez-me compreender a natureza efêmera da vida. A eternidade, percebi, não está no voar do pássaro, mas no ciclo permanente da vida.
Aprendi então que o voo é breve e o retorno à terra, inevitável. Vi que o desconhecido está na transição constante, na revolução de vida e morte, na transformação eterna da existência.
Por vezes, a minha natureza é peculiar. Parece que nasci, que vim ao mundo do avesso. Ocasiões surgem quando decido realizar uma tarefa e, inesperadamente, me encontro empenhado em outra. Almejo aniquilar um desejo e, paradoxalmente, ambos acabam me consumindo até a medula, em uma batalha mortal.
Em meio à confusão, me vejo preso em um enredo de vontades, oscilando entre o que desejo, o que faço e o que não faço. É uma dança complexa, onde sou simultaneamente maestro e espectador, regendo e assistindo meu espetáculo de contradições como um homem barroco.
A vida é simultaneamente longa e efêmera, semelhante a uma viagem de férias; delicada como as pétalas de uma rosa que se desfazem a cada aniversário.
Eu, por minha vez, continuo a voar até o dia em que inevitavelmente sucumbirei, tal como o pássaro que encontrei no caminho para a colocação Cachoeira (seringal Carmem), quando tinha apenas dez anos de idade, naquele verão de 1970, em um mundo que já não existe mais. Sou uma sobrevivente dele, eu vim de lá.