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Em memória de Joyce e das outras

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Manifesto Feminista “Apenas Pare”


Soube do velório de Joyce por pura intuição, e digo, humildemente, que desconhecia o fato quando fui ao cemitério, embora as circunstâncias e motivações eu já conhecesse de outros casos, por isso não ignorava mais as sutilezas que mascaram a crua e voraz veracidade de um feminicídio. A mim parece óbvio; mas não é assim que se procede um julgamento de morte de uma mulher, ainda mais quando ela mesma utiliza a arma do crime, sozinha (em tese). Fiquei muda quando li que as mulheres condenadas por bruxaria na idade média preferiam ser queimadas em público do que negar secretamente o que elas eram. É que elas morriam por dentro antes de serem cruelmente assassinadas pelo sistema. E o sistema é até hoje. Os valores deste sistema objetificam e subjugam as mulheres, e como torná-las autenticamente humanas dentro de uma estrutura injusta que, desde antes mesmo de nascer, as mulheres já são condenadas à subalternidade servil? Quem julga os que punem neste sistema, afinal?


Joyce fora empurrada, sob ameaça, ao precipício. Ela, como as outras, não sabia o que fazer. O medo desesperado do escândalo da tragédia a consumia, e a vergonha. Era o inferno, e ela não aguentava mais a grande tortura de viver daquele jeito. Ela dera tudo – inclusive amor – e já não restava mais nada. Estava seca, exceto pelo sofrimento intolerável que a inundava. Chegara ao fim; estava tudo escrito. Joyce escrevera tudo. Escrever era sua prova de vida. Quando lhe faltava a palavra, riscava linhas irregulares e disformes em seus cadernos contábeis. Estava pendurada no vermelho. Fechava os olhos e a dor aguda não desaparecia. Eu vi, em vídeo, o deserto lúgubre escorrendo em lágrimas enquanto ela dava o último adeus aos filhos antes de tomar as pílulas. O agressor de Joyce não lhe deu de beber o veneno mortal porque não estava fisicamente lá. Mas, instantes antes, ele estava virtualmente. Não havia sangue derramado. O agressor de Joyce não sujou as mãos de pólvora. Quem, afinal, disparou o gatilho psicológico que a jogou no abismo?


Naquela noite não dormi pensando na lei. A lei explica o fenômeno. Se feminicídio é um fenômeno, que a lei o compreenda! E que se compreenda antes mesmo de o fato existir, porque as intenções que justificam os fatos são tão presentes, tão presentes no cotidiano das mulheres que se tornam invisíveis. E perceber – perceber sobretudo o que se passa dentro da mulher devastada por um homem por ser o que ela é. O humano é, por natureza, matéria de lei – e isso também é uma verdade que se pesa, afinal não há fim sem começo, e a violência contra as mulheres não emerge exclusivamente do crime – que representa o fim. Ela vem antes, dos lugares mais calados. O corpo no chão diz muita coisa, mas não conta uma história. Antes de qualquer pensamento – porque o pensamento já vem todo impregnado de valores impostos pelo sistema – deveria haver a pergunta, aquela que só se responde sentindo: “Ela morreu porque era mulher?”


Mais do que procurar encaixar o “Caso Joyce” nos artigos da lei, a Maria da Penha tem uma intenção clara e muito mais larga do que apenas punir um acusado: salvar as mulheres. Inclusive pelo ato da punição, quando não houver outra porta – eis a resposta. Mais do que isso, só a inteireza de um amor compreendido entre um homem e uma mulher. Por isso, o “Caso Joyce” merece ser julgado não só pela via oficial da Justiça, mas por toda a sociedade, porque esse caso, enquanto fenômeno, pode revelar, em sua luz própria, soluções para evitar o assassinato psicológico de outras mulheres. Alerto: o modus operandi do feminicídio se adequa aos tempos. Aliás, é oportuno agora se indagar: “Como a lei irá tratar o feminicídio psicológico em contextos de violência virtual?”


De repente, uma tragédia como essa muda tudo. O mundo, como era antes, acabou não só para Joyce. E se a morte não fosse o fim? A mãe, vestida em preto, procura renascer depois do parto prematuro da filha. E se as flores fossem de barro? – Não, não estou sonhando. Estava era tão infantil que não raciocinava. É preciso sensibilidade para enxergar a claridade intransponível sem o risco da loucura. Com medo de apagar os olhos para o sono – temendo o perigo de entrar naquele estado que me acontece desde criança quando velava os mortos – escrevi para aliviar minha alma, e agora vos ofereço.


Joyce foi violentada.
Se estou pecando ao dizer isso, que Deus me perdoe.
Se estou mentindo, que Nossa Senhora, minha Mãe, tenha compaixão e misericórdia de minha alma.


Mas como a verdade pode ser tão impossível?
A verdade é o que se fala, e eu vou falar.


Joyce foi violentada pelo predador de mulheres.
Ele tem nome, endereço, status social.


– e a sede voraz por almas femininas.


Sei que Joyce está no paraíso. Seu nome é de salvação.
Seus pecados foram perdoados, como espero que os meus também sejam.


Joyce entrou no mistério com a pele marcada:


uma torre de quatro pisos ligada ao lunário-eterno e a árvore-mágica circundada.
Dois peixes grandes nadando nas costas do sol dormindo.
“Respirar” e “mudar” em língua estrangeira sustentando o arco.


Os dias de nascimento da avó, mãe, irmã e filhos, hermeticamente enlaçados.


Sobre as letras grossas e negras da palavra “Acreana”,


duas pequenas células em Braille revelam o segredo da esfinge.


Ela era “joy”: mas agora estava triste.


Com o braço enfeitado, Joyce se despediu do mundo.
E eu não suporto isso!


Não falo apenas de Joyce. Falo de mim. Falo das outras.


Joyce não é apenas mais um corpo abatido.
Ela é denúncia, é luta.
E, enquanto houver quem se cale, eu gritarei.
Joyce foi violentada.


E tantas outras continuam sendo.


O silêncio não será nossa última fala.


O que dizer de um feminicídio da alma antes de o corpo todo morrer?


Apenas uma palavra pode parar o mundo. Então me calo.



Por Antonia Tavares – estuda violências contra mulheres desde 2009.


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