Os números não são precisos. Dezenas. Centenas. Talvez na casa do milhar. São muitas as famílias de agricultores de base familiar que vivem, no Acre, um contexto de “conflito agrário”. A terra que gerou ícones da luta pelo direito à vida na floresta como Wilson Pinheiro e Chico Mendes vive a sensação de uma aparente paz no campo.
Não há apenas uma explicação para o problema. Quando um agricultor assentado invade a área de reserva legal, em tese, tem-se um exemplo de “conflito agrário”. Nessa situação, há milhares de agricultores.
Há também conflitos de áreas que são uma espécie de vazios fundiários, de terras devolutas. Nessas áreas, os conflitos vêm de longa data. Alguns, ainda da constituição dos seringais. “O Acre é um Estado que tem muitas terras devolutas que precisam fazer o processo de regularidade”, afirmou o analista em Reforma Agrária e Conciliador Agrário do Incra no Acre, Moisés Barros de Medeiros. “A tramitação para se arrecadar a propriedade e transformá-la em projeto de assentamento ou mesmo a regularização fundiária por meio da governança fundiária do Incra depende muito de investimentos do Governo Federal”.
Medeiros sintetiza: “Posso dizer que boa parte dos conflitos [do Acre] se resolveria com investimentos.
Essa é uma fala muito significativa para mostrar que o perfil dos conflitos agrários do Acre não guarda relação com aquele clássico problema que está no imaginário coletivo: o Sr. João diz para o Sr. Joaquim: “Esta terra é minha”. E o Sr. Joaquim responde. “Não é! É minha!” Esse tipo de conflito não é moeda comum por aqui.
Sobretudo no Acre, a reação adequada para se resolver conflito agrário tem nome (investimento) e identidade (Governo Federal), como lembrou o analista Medeiros. Com um detalhe: Reforma Agrária se faz com dinheiro e planejamento. Ao longo dos anos, o que se viu foi justamente o contrário: o desmantelamento da estrutura de trabalho do Incra, redução do número de servidores.
A falta de delimitação (ou demarcação), georreferenciamento, certificação e política agrícola tornam vulneráveis muitas regiões acrianas. Áreas assim atraem invasores. E eles chegam. Eles vêm de longe. Invasores de Rondônia e até do Mato Grosso já foram identificados em operações policiais.
Nas regiões de Acrelândia, Feijó e Tarauacá foram identificados grupos criminosos organizados. Foram alvos, inclusive da recente Operação Usurpare, deflagrada pela Polícia Federal, em outubro deste ano, que combateu a ocupação irregular de áreas protegidas. Seis pessoas foram presas. A operação teve apoio do Incra, do Ibama e da Polícia Militar do Acre.
Atividades ilegais de ocupação e desmatamento em assentamento do Incra em Acrelândia foram identificadas. O Conciliador Agrário do Incra no Acre, Moisés Barros de Medeiros, afirma que alguns integrantes desses grupos criminosos têm recursos financeiros. Esses recursos garantem cooptação de pessoas para fazer invasão de terras públicas ou forjar documentos de forma a dar um ar de legalidade.
“Outro problema que não é relacionado à terra propriamente, mas é uma questão de Segurança Pública são as organizações criminosas, os faccionados”, pontua o analista em Reforma Agrária e Conciliador Agrário do Incra no Acre, Moisés Barros de Medeiros. Esse tipo de problema não guarda relação direta com os outros fatores da vulnerabilidade.
Isso quer dizer que a área pode estar delimitada; pode estar georreferenciadas; pode estar certificada e pode até haver política pública agrícola. Mesmo assim a facção pode estar presente. “O Incra tem feito rigorosos procedimentos para que não possa tornar os documentos fraudulentos em documentos legais”.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, na publicação Conflitos no Campo 2023, o Acre teve 82 conflitos por terra ano passado. Isso envolveu um universo de 8.656 famílias. Somente o Pará (178) e Rondônia (149) tiveram números maiores.
O Amazonas registrou o mesmo número de conflitos agrários que o Acre ano passado, embora o universo de famílias atingidas no Estado vizinho seja maior. Não há região no país com mais casos de conflitos agrários do que no Norte (666). Isso refletiu em violência e exclusão de quase 91 mil famílias.
Os números da CPT desautorizam qualquer interpretação que não seja ao do confronto aberto. O que pode diferenciar é a forma. Mas em áreas de conflito nenhuma comunidade está tão vulnerável quanto as comunidades indígenas.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra a tabela que mostra as “Tentativas de Assassinato” motivadas por conflitos agrários no país os indígenas estão na linha de tiro. O Acre, em 2023, registrou um caso na Terra Indígena Kampa, em Feijó. No Mato Grosso do Sul, todos os casos registrados têm indígenas como vítimas da tentativa de homicídio.
Pará e Bahia lideram o número de tentativas de assassinato motivados por conflitos por terra. Pela repercussão e pelo grau de violência e o número de pessoas envolvidas, comparado ao que ocorre no Acre, vai se moldando a falsa impressão de que aqui existe uma “blindagem” aos conflitos agrários.