As “heranças africanas” no Acre têm características muito particulares. Historicamente, a presença do negro originário do continente africano não se efetivou por aqui, diferente do que ocorreu em grande escala em outros estados como Bahia, Pernambuco, Maranhão. Mas uma geração de afro-brasileiros, netos de escravos, presentes na região a partir do primeiro Ciclo da Borracha (1877-1910), mudou muita coisa por aqui.
Para o historiador Marcos Vinícios Neves, as doutrinas fundadoras do Santo Daime revelam características de heranças africanas que se mesclaram aos diferentes modos de vida na Amazônia. “O aspecto que eu destacaria de maior influência efetiva, duradoura, disseminada no tecido social acreano foi a constituição das doutrinas pioneiras do Santo Daime”, afirmou o historiador.
“Não podemos esquecer que as próprias doutrinas do Daime, essas fundadoras, foram muito perseguidas. Mestre Irineu foi intimado a prestar depoimento na polícia, Mestre Daniel e Mestre Gabriel também. Tiveram ameaças de terem os centros fechados. Demorou décadas para a sociedade acreana aceitar que aquelas doutrinas não era curandeirismos ou feitiçaria.
Muitas vezes eles foram tratados assim. É uma configuração muito original do Acre, muito singular do Acre”.
O escritor Antônio Alves pertence à comunidade do Alto Santo, criada por Mestre Irineu ainda na primeira metade do século passado. Em nenhum momento da fala de “Toinho”, como é conhecido, nega-se a importância da diversidade de culturas na formação da comunidade criada por Raimundo Irineu Serra. “Mas não há traço identitário com uma cultura específica. Há uma síntese. Somos uma comunidade ayauaqueira, tradicional, dos pretos, dos caboclos, de uma ancestralidade difusa, mas não particularmente de uma matriz africana”.
Toinho lembra que Mestre Irineu foi “acusado” de “fazer uma doutrina cristã”. “Falavam ‘Ah… o mestre Irineu podendo ter valorizado uma religião de matriz africana foi fazer uma doutrina cristã’. Não é isso. Aqui, no Alto Santo o que é mais forte é a doutrina cristã, mas em nenhum momento há exclusão.
Pai Célio de Logun não é otimista em relação à aceitação social das religiões de matriz africana. “Ainda encontramos gente que tem medo”, lamenta. Ele pontua que o próprio poder público não tem conseguido reagir.
Ele cita que dois parlamentares estaduais do Acre dedicaram emendas para trabalhos relacionados às religiões de matriz africanas. “O governo não liberou o recurso. Estava empenhado desde julho e até agora não saiu e fica por isso mesmo”, indigna-se.
A referência que a federação tem para atuar na ajuda e cooperação do “Povo de Santo” é o mapeamento feito por um projeto que contou com apoio da Fundação Garibaldi Brasil por meio das Câmaras Temáticas. Nesse mapeamento, foram contabilizados 50 terreiros.
O que a federação precisa é de um estudo sócio-econômico dessas Casas do Povo Santo. Parte dos recursos das emendas parlamentares seria usada para fazer esse estudo.
Quando se tem espaços de Umbanda, Candomblé, Içá, Quimbanda melhor estruturados a possibilidade de aceitação comunitária é maior. As Searas (espaços privados de reverência de imagens e cultos afro) são os locais onde são registrados os maiores casos de racismo religioso. “A polícia não intervém porque avaliam que é ‘briga de vizinhos”, lembra Pai Célio.
Em 2024, a Polícia Civil registrou apenas dois casos de racismo religioso. Um em Rio Branco e outro em Cruzeiro do Sul. “Podemos dizer que, praticamente, esse tipo de crime não prevalece, praticamente inexiste”, avalia o delegado Geral de Polícia Civil, Henrique Maciel.
Pai Célio de Logun discorda frontalmente. “Nós fizemos uma manifestação para celebrar Exu, o Deus da Comunicação há dois anos. Você precisa ver o que foi dito nas redes sociais. Nós denunciamos, mas você acha o quê? Nada foi feito. O único parceiro que temos tido é o promotor Thales, dos Direitos Humanos. O MP é parceiro”.
A sacerdotisa (ou Mãe de Santo) Marajoana de Xangô coordena a Tenda de Umbanda Luz da Vida há 9 anos. Lidera um grupo de 46 médiuns ativos na Estrada do Quixadá. No ritual em que ela conduz, usa-se “as energias da floresta” (ayahuasca e rapé). São elementos usados em rituais de cura e concentração.
“Aqui, não pregamos o ódio. Não pregamos o rancor. Pregamos a união, o amor, em todas as suas formas e expressões”, afirma. “Que não há nisso? Nós exigimos não tolerância. Nós exigimos respeito”.
Marajoana de Xangô foi vítima de racismo religioso durante um culto ecumênico. Foi chamda de anti-cristo. Um vídeo registrou o episódio que se transformou em um processo. “Tudo foi resolvido, mas nós precisamos reagir. E a nossa reação é com o respeito como instrumento. Sempre”.