Aviso: Leitura para pessoas maduras emocionalmente, capazes de amar sem reservas, as que sabem que depressão não é frescura.
No cemitério, em meio ao ritual de sepultamento, ela permanecia indiferente às pessoas ao seu redor. Imersa em seu universo de reflexões, mal percebia o leve sopro da brisa naquele final de setembro. Seu olhar estava fixo na lápide gélida, perdida em memórias dolorosas. O som abafado das lágrimas derramadas parecia se dissipar em sua mente, substituindo um silêncio ensurdecedor. Pensamentos e incertezas transitavam, confrontando-a com a tragédia que revelava a cruel e implacável realidade da morte.
O pai partiu de maneira trágica quando ainda era uma criança. Em seguida, a avó e, agora, o grande amor de sua vida – a âncora que mantinha seu navio estável, hoje um coração à deriva nos tumultuosos mares da existência. Lidar com as perdas e dores desafia a natureza humana.
Ela ainda não sabia que mesmo com o coração em pedaços, podemos buscar força nas lembranças daqueles que partiram, nutrindo a esperança de que, mesmo em meio à tempestade, haverá um momento de serenidade, um novo amanhecer. A vida, apesar de sua crueldade, também ensina resiliência.
“Lázaro morreu, mestre”! “Não, Lázaro dormiu”. “Não, Lázaro morreu”. “Onde está o meu mestre, diz-me jardineiro? “Por que choras, mulher? “Dize-me jardineiro, onde puseste o corpo do meu mestre? Maria, por que choras? “Mestre”!!!!!! Fragmentos de versículos chegavam a sua mente vindos do inconsciente…
Sem futuro, sem sonhos, sem lar, sem filhos, sem nada, tudo morria nele, tudo. O grande amor, ele, a cura para sua doença que acreditou ser para sempre, foi fazer as pazes consigo mesmo no túmulo. A paz que ele transpirava era falsa. Não há paz na guerra da existência. Seu olhar era uma dor incontida. Mas, por quê? Precisava de uma resposta.
Nenhum sinal. Nenhuma explicação. Só se foi. Por que a poupou, poderia ter ido junto com ele? Por que morremos sozinhos? Ninguém pode morrer pelo outro. Só Deus em uma cruz. Morreu por nós levando toda a culpa. Que culpa? Aprendeu quando criança na igreja sobre culpa, a culpa de existir, o pecado original.
Após vivenciar todo o amor e alegria, ele a conduzia ao sombrio quarto da solidão, culpa, medo e angústia. Era preciso resistir à tentação de acompanhá-lo. Ela precisava resistir. Amava sua mãe. Sentiu a penumbra obscura do passado e o mistério da morte do pai. O passado sempre ressurge para nos aterrorizar, ela costumava dizer.
Mergulhou em si, esse abismo sem fim de solidão que é todo ser humano. Um simples sussurro do vento a comoveu fazendo-a a chorar descontroladamente. Não, eu não poderia ter ido ao cinema no dia em que a vovó morreu. Eu deveria ter chorado, gritado, me rasgado inteira de dor. O mundo deveria saber da minha dor lacerante. Mas por quê? Porque o mundo é indiferente a dor do outro. Mesmo assim, gritaria para Deus do mais profundo da alma. Se sentiu culpada pela morte do pai, da avó e dele, do seu grande amor, da sua cura.
Durante alguns dias experimentou uma dor inconsolável. Foram dias de luto. De questionamentos, de lágrimas diante do túmulo no cemitério. E o pai, que nem túmulo tinha para chorar… o rio o arrastou naquela noite de tempestade. Não há respostas. Perdeu o medo de cemitérios que tinha na infância. Pela primeira vez acreditou que poderia haver vida depois da morte. Porém, logo a doença se manifestou trazendo a realidade implacável do fim absoluto, a maior tragédia humana. Era no que ela acreditava.
Desde que o pai partiu nunca o perdoou por tê-la deixado sozinha, sem nenhuma explicação. Era ainda muito criança. Durante um tempo ficaram muito felizes. Fragmentos da memória a prendiam ao passado. Odiava esse tempo. Era vago, vazio, nebuloso, lhe causava náusea…inverno e verão; verão e inverno. E a primavera que nunca vem.
Acreditou que o pai tinha a doença mortal, mas não revelava, não dizia. O vazio, a ausência de sentido o acompanhavam também desde a infância e passou para ela. Só pode ter sido isso. A partida dele despertou nela os sintomas. Seu pai tinha depressão. Se tinha, escondia muito bem. Sim, ele soube esconder do mundo, escondeu de todos a tristeza além da tristeza. A mãe de todas as tristezas: A angústia do fim iminente, da morte. Não se pode esconder depressão, pensou ela. Devemos abrir o nosso coração, gritar para o mundo: Estou com medo de viver! Estou sofrendo! Dói demais. Quero que simplesmente tudo acabe. Quero dormir para sempre.
Porém, a vergonha de se mostrarem fracos diante da família, dos amigos e do mundo a sua volta, os impede. Esse sentimento potencializa ainda mais a doença. Acreditar que não há cura também é um grande erro. Pode não haver cura, mas aprende-se a viver com uma doença como uma companheira de infortúnio. Como um cego que depende da bengala para caminhar, para viver. A bengala é parte dele. Extensão de sua vida. Não é apenas um pedaço de madeira. Tem vida e significado. A luta contra a depressão é o sentido de todas as vidas humanas. Lutamos para não morrer com a certeza implacável de que vamos morrer. Por isso sonhamos com o paraíso. A eternidade. Eram suas conclusões formuladas pelo que vivia e sentia.
Naquela noite caminhou até a velha ponte sobre o Rio das Pedras que ficava na entrada da cidade. O rio que ela tão bem conhecia a atraía com a força de um buraco negro, onde nem a luz de uma alma escapa. Como um chamado selvagem. Enquanto caminhava firme em direção a ponte lembrou de uma citação do último dos românticos: “Não olhe para o abismo, ele também olhará para você”.
Pois decidiu olhar para o abismo com força, coragem, não importava mais nada. Quer livrar-se de uma tentação, ceda. Mas não era bem assim, tinha a culpa. Maldita culpa que a fazia sempre hesitar em tudo na vida. Isso vai me fazer sofrer, se perguntava. Mesmo não fazendo continuava sofrendo pela expectativa de pensar em fazer. Só em pensar já se sentia culpada. O poder de decidir gerava em seu coração a angústia. Pensamentos assim faziam parte do seu tormento diário. Era uma doença, ou sintomas dela, da enfermidade mais aguda, a doença do pensamento.
Aproximou-se da ponte, fixou os olhos na correnteza caudalosa, a água deveria estar morna, eram dias de verão. Poucas luzes, apenas o reflexo pálido de estrelas e da cidade. Observou suas margens e algumas pedras formando corredeiras. Onde estava a terceira margem? Havia mais uma margem onde seu pai estava. Seu pai estava na terceira margem. Sim, sim, ele deveria estar em algum lugar por ali.
Sobre seu pai ouviu muitas conversas sem que percebessem sua presença. Em casa, na escola, na igreja ou em reuniões de família. Um voo para o desconhecido. A górgona o matou, petrificou seus sentimentos e seu amor e o lançou no abismo. Um covarde! Não, ele não era um covarde, era o seu pai, o seu amor. Só lhe restava uma coisa a fazer, procurá-lo, pensava ela, entrar na canoa e ir para a terceira margem. Tudo isso era irreal. Fragmentos de um conto de João Guimarães Rosa. Alguma coisa a empurrava de volta à realidade. Que realidade? O mundo que vivia era irreal, estranho e opressor.
Mas, ali, naquela noite, sua vida mudaria para sempre. Agarrada apenas a grade de proteção da ponte chorou novamente o choro de todas as perdas, de todas as separações, das dores do mundo que não eram dela, queria afogar-se em apenas uma gota de lágrimas… queria apenas esquecer tudo. Apagar da memória o mundo. Pensou na mãe, na igreja, na escola, em Jesus e na primavera que nunca viria na sua vida. Não queria morrer, mas matar a dor que a fazia sofrer.
Subiu no parapeito da ponte desafiando o perigo e a própria morte, como fizera o pai em um dia já perdido em suas memórias, mas presente em sua vida. Porém, a presença de um estranho na penumbra de uma das colunas a assustou. Sim, sim, era alguém ali, observando cada movimento que ela fazia. Assustou-se, o estranho caminhou em sua direção. Havia chovido horas antes, a velha ponte estava escorregadia como sempre.
Ele estendeu a mão para ela em silêncio. Com os olhos embotados de lágrimas viu naquele rosto, nos olhos negros dele uma fagulha de esperança para continuar vivendo. Viu a sua vida refletida neles. Estranhamente gostava de estranhos, dos invisíveis, assim como ela. Poderia ser alguém que foi ali com o mesmo propósito. Não, não há propósito! Só loucura, falta de sentido. Também poderia ser alguém com a mesma doença, os mesmos questionamentos, sem paz e sem alegria. Ele parecia esperá-la naquele momento como se tivessem marcado um encontro. Seu coração estremeceu.
O homem saiu da penumbra, era bem jovem, aproximou-se dela, estendeu a mão. Pode vê-lo melhor, seus olhos brilhavam. Antes que a alcançasse, que segurasse em suas mãos trêmulas, escorregou e caiu no vazio. Ouviu-se o grito, a queda e o som do impacto de dois corpos batendo na água entre as pedras.
O estranho mergulhou no rio tentando salvá-la…os dois desapareceram na correnteza…
70 anos depois
Filha, estou lhe enviando o meu diário porque preciso lhe contar sobre a minha vida, algo que trago no coração, um fato que aconteceu comigo há muito tempo.
Eu era adolescente, quase uma jovem. Gostava muito de ler, era uma devoradora de livros como você sabe. Vivia mergulhada em dúvidas e questionamentos sobre a vida e a existência. Padecia de um sofrimento mental comum a muitos jovens da minha idade. Não são dores físicas, são na alma, no desabrochar, na passagem e o mundo assusta. Tinha pensamentos suicidas.
Nunca lhe falei da morte do seu avô, o meu pai, de como ele foi até a ponte sobre o Rio das Pedras desesperado depois de ter descoberto uma doença, um tumor no cérebro que lhe daria pouco tempo de vida.
Chovia muito naquele dia. Subiu no corrimão da ponte desafiando o perigo. Ele amava a vida, nos amava muito, amava Deus. Estava revoltado, não desesperado. Uma pessoa que o viu naquele dia disse que ele gritava, perguntava para Deus o porquê da sua enfermidade? Ficou ali por várias horas. Aquela ponte tinha um mistério. Era ali que ele acreditava falar com Deus. Como se pudesse se aproximar do céu e sussurrar a dor nos ouvidos do criador.
Quando decidiu voltar, já tarde da noite, perdeu o equilíbrio e caiu no rio. Seu corpo nunca foi encontrado. Acreditaram que ele cometera suicídio, mas não era verdade conforme relatou uma testemunha anos depois. Porém, ficou a dúvida. Também tive um namorado, ele também morreu muito jovem. Foi meu primeiro grande amor, me compreendia, era como eu, um doente. Compartilhamos melancolias, dúvidas, tristezas e experiências e o gosto amargo dos pensamentos suicidas.
Anos depois aconteceu algo semelhante comigo no mesmo rio, na mesma ponte. A minha doença, como disse, é comum, a falta de entendimento, de compreensão de que a mente produz um sofrimento a partir de pensamentos e dúvidas sobre a existência. Sofrimento produzido por nós, que se originam em perdas e dores, que com a ajuda de profissionais pode ser muito bem resolvido. O sofrimento é inerente a nós humanos como a angústia.
Descobrimos com o amadurecimento que a angústia produz vida, uma vida verdadeira, autêntica; nos faz sentir a existência na pele como ela é de verdade. Sentir angústia é ver o mundo como ele é. Como um motor nos impulsionando a viver. Vivemos de angústia em angústia, é sair da instrumentalização do mundo. Veja o caso do patriarca Abraão, o Hebreu. Deus pediu o seu filho Isaque em sacrifício. A angústia no coração de Abrahão produziu uma explosão de fé ao ponto de ser considerado o pai da fé e o amigo de Deus. A fé desejada por Deus nasceu quando ele aceitou o sacrifício imposto por Yavé, que o impediu de sacrificar Isaque. “Agora eu sei quem é você, Abrahão”.
A angústia é uma fissura na mente, uma brecha para o inconsciente que nos faz agir sem saber o porquê. Por isso sonhamos, temos pesadelos. A partir daí temos uma melhor compreensão do mundo. Só precisamos saber que é parte de nós porque queremos nos entender, ter controle, mas somos arrastados a viver por uma força cega, como a correnteza de um rio nos arrastando. Aceitar o fato, a consciência da morte e do fim gera desespero, mas tem que ser encarado de frente, com serenidade e coragem. Morrer é como nascer, minha querida filha. Não tema o desconhecido.
Um certo dia fui ao rio, subi no corrimão daquela velha ponte assim como meu pai fez e fiquei imaginando o que tinha acontecido com ele. A ausência dele me causava um grande sofrimento. Queria segui-lo, encontrá-lo. Estava desesperada.
Foi então que vi, na penumbra, uma pessoa que tentou me ajudar antes que eu pulasse. Minha real intenção era pôr fim ao sofrimento, havia um conflito interno muito grande. Porém, antes que desistisse da ideia escorreguei e caí na correnteza. Acho que o mesmo que aconteceu com o meu pai que eu tanto amava.
Acordei de um coma profundo depois de alguns meses. A pessoa que estava na ponte e me salvou era um jovem que costumava passar horas observando o rio. Isto, eu soube depois.
Fui encontrada sem vida em uma das margens logo abaixo da ponte. Socorristas foram chamados e eu fui ressuscitada. O corpo dele não foi encontrado. Só eu voltei, ele ficou do outro lado. De alguma maneira ele me disse, não sei explicar, mas me disse que estava tudo bem, que eu iria sobreviver. Estou convicta, mas às vezes parece que foi um sonho.
Depois desses acontecimentos descobri que meu sofrimento mental era egoísta, não via nada à minha volta além de mim mesmo. Só importava a minha dor, minhas angústias, meus sentimentos de perdas e a ideia de um fim absoluto. De um conhecimento oculto da realidade que o sofrimento produzia.
Quem sou eu, filha, para dizer que não há vida depois da morte? Que tudo isso é obra do acaso? As evidências apontam que o ser humano é tão importante para o universo como uma pedra rolando a ribanceira. Que nós é que damos sentido às coisas através da nossa consciência.
Todavia, duvidar da existência de um ser superior seja lá como o chamem seria muita arrogância de nossa parte. Somos tão pequeninos nesse universo. Eu sinto que tem algo lá, muito grande, atrás da cortina. Por isso, é importante aprender a ser alguém melhor para ajudar os que mais sofrem e vivem perdidos na ignorância, na intolerância, no ódio, na amargura. O amor ultrapassa as fronteiras da morte, você precisa saber disso, minha filha.
Depois que me recuperei procurei saber quem foi o jovem que me salvou. Encontrei uma família que morava próxima ao rio, queria pedir perdão, estava envergonhada e realmente me sentindo culpada. Não uma culpa mental pelo fato de ter sido lançada no mundo sem explicação e sem manual nenhum, inexistente, mas real e verdadeira.
O meu egoísmo o matou, tirou ele do convívio dos seus pais, matou sua existência e todas as possibilidades de ser. Eu tinha uma vida estética, sofria com uma pulsão, ideia fixa de que a vida não tinha o menor sentido e queria morrer. Hoje, olhando para trás, vejo uma outra pessoa que vivia em mim. Não parecia ser eu. Hoje quando me vejo no espelho me reconheço porque o tempo destrói o corpo, mas não minha essência.
No dia em que fui a casa dos pais daquele jovem veio a grande surpresa. Eles moravam em um sítio às margens do rio. Uma casa de madeira, simples, cercada de flores que exalavam um perfume que eu nunca havia experimentado. Eram muitas flores, algumas fruteiras também. Um lugar bucólico com uma grama verde e viçosa. Um paraíso em meio a aridez do solo e das rochas em volta. Da ponte não se via a casa, se situava atrás de um pequeno bosque. Pela primeira vez na vida senti como se houvesse primavera naquele lugar. Sim, sim era a primavera como nos filmes e nos meus sonhos.
Eles não estavam magoados comigo ou me odiando pela perda do filho, ao contrário, orgulhosos pela atitude dele em dar a vida por uma pessoa que ele não conhecia. A mãe, com lágrimas nos olhos me disse:
Filha, não estamos magoados com você, esse é o sentido sublime da vida, dar a vida por alguém, pelo outro. Meu filho foi capaz disso. Claro, gostaríamos que ele estivesse aqui conosco, mas, me diga uma coisa, ele não está melhor com o Pai? Estamos aqui por um tempo apenas. O meu filho veio a este mundo para salvá-la de morrer neste rio. Assim como Deus fez mandando o seu filho Jesus Cristo para nos salvar também.
Me veio à memória tudo que ouvi na igreja quando criança sobre a morte e ressurreição de Jesus. Achava Deus cruel. Como alguém pode mandar o próprio filho morrer em uma cruz dilacerado. Era o propósito. Filha, era o propósito. Dar a sua vida por alguém é o ato mais sublime de amor. O que faz uma mãe, uma pai pelo filho que ama? Dá a vida! Jesus disse que o verdadeiro amigo é capaz de dar a vida pelo outro.
Nunca esqueci a ternura que havia nos olhos daquela mãe quando falava do ato heroico do filho comparando-o ao gesto de Jesus na Cruz, em ter dado a vida por mim. Jamais olvidei também o olhar terno do pai do rapaz em apoiar tudo o que ela me dizia. Passamos uma tarde juntos, chorei muito. Me senti perdoada, consolada sabendo que saindo dali não seria a mesma pessoa. Eu tinha encontrado sentido para a minha vida: Reproduzir a atitude daquele jovem que me salvou de morrer afogada no Rio das Pedras.
Descobrir que a depressão deve ser encarada de frente, questionada. É preciso duvidar de cada pensamento, questionar tudo, cada ideia. Essa foi uma das razões que me fizeram ser médica. Doei minha vida para salvar pessoas. Esse é o propósito: doar-se. Após esses acontecimentos mudamos de cidade, fui estudar medicina.
Certa vez voltei à cidade e procurei pela família. Minha grande surpresa foi saber que ali, naquele sítio, a margem do Rio das Pedras, o lugar em que nasci para uma nova vida, há muito estava abandonado. Vi as marcas do que fora um lindo jardim. A passagem do tempo é implacável, mas não me assusta mais como quando eu era jovem e tinha medo do futuro.
Próximo ao rio havia dois homens pescando. Me aproximei e perguntei pela família que morava ali naquela casa. Se eles poderiam me informar. Me responderam que nunca morou ninguém ali. Entende filha, como não havia ninguém ali? Eu estive lá, conversei com eles. Passamos uma tarde juntos. Fiquei confusa e insistia sobre os antigos moradores.
Os pescadores me informaram que há muitos e muitos anos um rapaz morou sozinho naquela casa. Um dia ele veio, ficou por algum tempo e depois foi embora. Esperava por alguém. Como assim, foi embora? Não, não, eu estive ali com seus pais, conversei com eles, nos abraçamos, choramos juntos…
Filha, são muitos os mistérios dessa vida. Aceitei o fato de que existe algo muito maior do que imaginamos ou pensamos. É estranho, mas existe. Minha mente racional não compreende, não aceita, foge completamente a lógica, parece loucura, mas tudo o que passei foi verdadeiro. Havia sim alguém naquela ponte que pulou no Rio das Pedras comigo e me salvou e seus pais moravam naquela casa. Talvez, um dia eu ainda o encontre.
No incêndio da boate Kiss, que estava repleta de jovens, um deles salvou mais de 20 pessoas e morreu quando tentava salvar mais uma. Renunciou a sua vida, ao amor de seus pais e o futuro para salvar criaturas que ele não conhecia. Filha, ele não morreu; ele viveu. Talvez seja o mesmo jovem do Rio das Pedras.
Filha, em breve vou descansar. Meu coração está em paz. Sei que fiz a minha parte e minha dívida foi paga por Cristo. Compreendi a dor antes da glória. Eu acredito em Jesus, nele encontrei a primavera que nunca veio. Você sabe, moramos em um lugar em que as quatro estações do ano não são definidas. Não temos primavera nem outono, isso sempre me incomodou, somava-se ao vazio existencial em mim. Porém, mesmo quando a primavera não vier com suas flores e seu perfume, Jesus virá com sua doçura, ternura e amor através de uma pessoa decidida a nos salvar como aquele rapaz.
É impossível não crer nas palavras, vida e obra de Jesus que, infelizmente, homens obtusos sistematizaram e criaram religiões para escravizá-los. Para oprimir e serem oprimidos. Estamos ainda muito longe de alcançar a mesma luz. Como a luz que o Sol lança sobre nós na primavera fazendo as flores desabrocharem num espetáculo grandioso de cores e vida como vi naquele jardim conversando com aquela mãe e o pai.
A depressão é como um inverno frio, congelante, mas existe um jardim cheio de flores a ser descoberto em nós. Aquele jovem, ao me salvar, me conduziu e mostrou o jardim e a primavera da vida dentro de mim.
Gostaria que você soubesse de tudo isso. Na vida passamos por muitas lutas, dificuldades e problemas, mas o que seria a existência sem tudo isso? Porém, nunca se esqueça que o amor está além do tempo e da morte. O amor de doar-se porque, como disse Saulo de Tarso em uma carta aos seus amigos da cidade de Corinto.
Para que outros possam viver, vale a pena morrer.
Tenho algo mais que quero lhe dizer, filha. No dia em que minha avó morreu, a sua bisavó, eu não quis ir ao velório nem ao sepultamento. Fui ao cinema. Era só uma menina assustada, com medo do mundo, da existência e da morte. Não encontrava sentido para nada. Mas, eu a amava muito, com todo meu ser e força do meu coração. Se eu morrer, você quiser ir ao cinema não vou me importar. Sei que você me ama. Não serei eu ali, o corpo é só a casca, filha. Também não chore por mim de desespero, chore de saudade dos momentos que passamos juntos.
Saiba que a morte é como uma grande viagem para a eternidade. E quando você passar pelo Rio das Pedras lembre que existe uma terceira margem que poucos conseguem ver. Eu estive lá, e voltei para cumprir minha missão. Estarei lá com meus pais, seu pai e o jovem que salvou minha vida. Não só de morrer afogada, mas a minha alma. Compreendi o sentido real de viver através do gesto sublime dele, o de dar a vida por alguém, mesmo quando a primavera não vier Jesus virá filha, Ele virá. De alguma maneira Ele virá. Fica bem!
Com amor, sua mãe Ana!
… Pouco tempo depois a doutora Ana morreu. Graduou-se em medicina, psiquiatria e psicologia. Dedicou toda a sua vida a salvar adolescentes e jovens que viviam com depressão contando sua própria história, pensamentos suicidas e redenção. Falava de Jesus, o Mestres dos mestres, o amigo fiel, como a expressão maior do amor de Deus. Dizia que Ele revelou o verdadeiro sentido da vida quando disse no livro sobre Ele, escrito por João, seu amigo: Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. Vida abundante como flores na primavera bem antes que setembro termine.
P. S. Sim, a depressão não é frescura, mas sim uma doença psiquiátrica grave e incapacitante que requer tratamento: Esta é uma história de ficção, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
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