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Precisamos voltar a odiar a ditadura

Por
Valterlucio Campelo

Observando o andar da carruagem ditatorial no Brasil, assistida por uma imprensa serviçal e trazendo a bordo autoritarismo, perseguição, iniquidade, prisão e tortura, lembrei do maior emedebista de todos, Ulysses Guimarães, um verdadeiro democrata que ao presidir a Constituinte, em seu discurso de promulgação da Carta de 1988 disse solenemente olhando para as gerações futuras:


“A nação nos mandou executar um serviço, nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita, ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito, rasgaram a Constituição, trancaram as portas do parlamento, garrotearam a liberdade, mandaram os patriotas para a cadeira, o exílio e o cemitério. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura, ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina”.


Este foi, seguramente, o mais importante discurso de que se tem notícia na história recente do Brasil, proferido em 05 de outubro de 1988, quando o MDB à frente da Constituinte ainda não se dava o desfrute de flertar e, por vezes, se amancebar com partidos e líderes de tendência autoritária, em troca de uma presença humilhante na segunda fila da arquibancada do poder.


O trecho do discurso de Ulysses deveria ser lido todos os dias na Câmara Federal, pois é, infelizmente, muitíssimo atual. Veja-se que permanentemente a descumprem, a afrontam. Rasgam a Constituição com inquéritos ilegais; trancam as portas do parlamento com o cerceamento da fala de seus membros através das redes sociais; garroteiam a liberdade com o sigilo de inquéritos aos quais as vítimas sequer têm acesso e com o banimento de plataformas; prenderam de uma só canetada mais de milhar de patriotas; levam ao exílio jornalistas e pessoas comuns e Clesão morreu nos seus porões. Era disso que Ulysses falava em seu discurso em 1988. Poderia ter sido hoje, não é?


O inaceitável afastamento do direito à presunção de inocência está por trás da prisão em baciadas de todos os manifestantes de 08 de janeiro de 2023. Eles foram presos apenas por estarem ali, embora muitos lá estivessem orando, lamentando, ou observando e condenando as cenas de depredação. Não tiveram sequer o direito ao devido processo legal, sob a hipótese de que se ali estavam é porque pretendiam tomar o poder com uso da força, algo de todo impossível. Pobres senhoras e idosos, mães e pais de família traumatizados, filhos apartados, jovens deprimidos, bens e profissões desmantelados, um sofrimento que jamais será reparado. 


Lembremos que a hermenêutica preventiva, que cala e prende a pretexto de se antecipar a crises e golpes fantasiosos, foi utilizada por Adolf Hitler para avançar sobre povos e territórios. Um exemplo famoso é o seu discurso ao Reichstag em 22 de junho de 1941, quando anunciou a invasão da União Soviética (Operação Barbarossa). Nesse discurso, ele alegou que o ataque era preventivo, afirmando que o Exército Vermelho estava se preparando para atacar a Alemanha. Nos Julgamentos de Nuremberg, líderes nazistas, como Hermann Göering, tentaram justificar suas ações com a mesma falácia de defesa preventiva, repetindo a versão perversa que ultimamente tem dado o mote em Brasília. A punição preventiva é uma perversão.


A essa monstruosidade, Ulysses declarou seu ódio e nojo e nos transferiu, como num mandamento de liberdade, a obrigação de fazer o mesmo. Precisamos voltar a odiar a ditadura e os ditadores, precisamos removê-los. É imperativo que as nojentezas quase diárias que saem da torre de marfim negro sejam impedidas. Felizmente podemos fazer isso por dentro da Constituição, Ulysses e o parlamento de 1988 estabeleceram mecanismos constitucionais de executá-lo, basta que os homens e mulheres que lá estão, verdadeiramente ouçam seu discurso e sigam seu desiderato. Não mais do que isso. Não precisamos de conflito social, de confrontos, de conflagração ideológica, de botinas. Basta que as alavancas certas sejam acionadas e, democraticamente, nos termos constitucionais, os ditadores e aspirantes serão catapultados de suas poltronas luxuosas para um catre merecidamente desconfortável.


Precisamos ter à ditadura o mesmo ódio que Ulysses Guimarães tinha, o mesmo nojo aos ditadores, o mesmo desprezo aos que lambem botas ou togas dependendo da ocasião. Não se pode compreender o conformismo de deputados e senadores eleitos pelo povo, que se agarrando a pautas menores e mesquinhas, perseguindo projetos eleitorais ou contando o dinheiro de emendas PIX, se prestam a pavimentar o caminho daquela carruagem diabólica. Não foi para isto que votaram seus eleitores.


Vejamos o nosso caso. Do Acre, quais deputados assinaram o pedido de CPI do abuso de autoridade do STF que há mais de 240 dias dormita na gaveta do Arthur Lira? Apenas três deputados (Coronel Ulysses, Roberto Duarte e Eduardo Veloso) assinaram o pedido de impeachment do Alexandre de Moraes protocolado no Senado nesta segunda-feira, 09/09. Trinta e seis senadores, contando com Marcio Bittar e Alan Rick declararam apoio. Os outros preferem o lado da censura, odiento e autoritário? Como pensa o Senador Sérgio Petecão, que até agora não se posicionou? 


Precisamos oferecer ao Brasil a nossa contribuição à restauração do Estado de Direito. Cada um a seu modo e conforme suas possibilidades deve resistir e fazer a sua parte. O itinerário que se descortina, aberto por essa gente encastelada em um poder exorbitante, invasor de competências legislativas e executivas, politizado sem mandato popular, não é nem será jamais coadunado com o libelo de Ulysses. Em seu discurso, Ulysses Guimarães nos garantiu paz e liberdade, trabalho e liberdade, progresso e liberdade, democracia e liberdade, liberdade e liberdade, não podemos permitir que sua língua seja cortada.



Valterlucio Bessa Campelo escreve às segundas-feiras no site AC24HORAS e, eventualmente, no seu BLOG, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no DIÁRIO DO ACRE, no ACRENEWS e em outros sites. Quem desejar adquirir seu livro de contos mais recente “Pronto, Contei!”, pode fazê-lo através do e-mail valbcampelo@gmail.com.


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