A transformação tecnológica da economia e o aumento do aparato físico de vigilância estão mudando a cara do crime contra o patrimônio no Brasil: enquanto a quantidade de roubos cara-a-cara diminuem, os golpes virtuais e os estelionatos estão ficando mais comuns.
Segundo dados da edição 2024 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, essa mudança reflete uma tendência mundial e se consolidou de maneira definitiva no Brasil após o arrefecimento da pandemia, quando uma parcela mais significativa da população começou a digitalizar mais aspectos de suas vidas.
“Entre 2022 e 2023, os estelionatos por meio virtual subiram 13,6%; o total de estelionatos cresceu 8,2”, afirma o capítulo do documento que trata do tema. “Na ponta oposta, chama atenção a forte queda no registro de roubos a bancos e demais instituições financeiras, de quase 30% no mesmo período, seguidos dos roubos a estabelecimentos comerciais, que caíram 18,8%.”
Segundo o relatório, divulgado hoje pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), essa transformação cristaliza um processo que levou cerca de cinco anos para ocorrer no Brasil. Enquanto em 2018 o número de roubos superava o de estelionatos em cerca de 1 milhão, em em 2023, há 1,1 milhão de estelionatos a mais que roubos, consolidando “uma completa inversão nos registros desses dois tipos penais”.
Para os especialistas, a tecnologia influencia não só no aspecto de deslocar as transações financeiras do mundo físico para o virtual, mas também em equipar policiais e seguranças com mais câmeras e outros sistemas de vigilância, dificultando o crime presencial.
A necessidade de estar presente no meio virtual provocou, em certa medida, uma onda de “profissionalização” do crime.
— O que ocorreu foi uma migração da atividade para modalidades de crime que embutem riscos menores e que tem um potencial de ganho maior — diz o pesquisador Renato Sergio de Lima, presidente do FBSP. — No crime virtual, a relação custo-benefício é muito maior do que a de roubar veículo, assaltar bancos ou roubar carga.
Com a tipificação da modalidade virtual de estelionatos em lei desde 2021, ficou claro, de todo modo, que nem sempre os crimes cibernéticos requerem alta sofisticação. Há uma parcela pequena de criminosos e hackers capazes de perpetrar crimes financeiros sem sair de casa, mas a maior parte dos golpes virtuais que têm se verificado nascem a partir de um outro crime: o furto de celular.
Essa modalidade é a conexão dos “crimes de rua” com os crimes virtuais porque, além de permitir manipular aplicativos de compra, ela dá acesso a dados de cartão de crédito e a informações pessoais que permitem roubo de identidade.
Crime diversificado
Quando um ladrão furta ou rouba um celular desbloqueado, não raro usando moto ou bicicleta para surpreender transeuntes que estão usando o aparelho, ele não precisa ser um hacker para dar golpes virtuais depois.
— O celular desbloqueado é a porta de entrada para golpes que são perpetrados de uma forma muito rápida e rentável — diz. — Depois de trocar a senha, além do aplicativo do banco, que pode ser usado para fazer um empréstimo e transferências via Pix, estão lá aplicativos para comprar alimento, medicamento, bebida, que podem ser comprados para revender no mercado ilegal.
O especialista lembra que aplicativos de relacionamento também estão sendo usados para golpes, e mesmo que o ladrão tenha acesso apenas a um aplicativo de mensagem, ele pode usá-lo para contatar amigos e familiares da vítima e pedir dinheiro.
Um problema que o Anuário de 2024 identifica diante da digitalização do crime é que a polícia não está conseguindo se adaptar ao novo cenário com velocidade. Ferramentas de inteligência úteis para resolver grandes desfalques, como o sistema do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), também seriam úteis para investigar operações pequenas, mas são pouco usados hoje pelas polícias estaduais.
“Com isso, a produtividade das polícias civis fica muito dependente dos casos de prisões em flagrante realizados pelo policiamento ostensivo das polícias militares”, escrevem os autores do anuário, que criticam o currículo defasado das academias de polícia do país.
Fuga de cérebros
Lima afirma que um problema sendo vivenciado pela Polícia Civil de grandes cidades é que os poucos profissionais altamente qualificados em investigação digital são cortejados pelo mercado privado e acabam deixando a corporação.
— Quando você acaba de treinar um policial excelente, o setor privado vem e pega, porque segurança cibernética hoje é crucial em várias áreas na fronteira da economia. Aparece uma empresa e fala: ‘vem que eu te pago o triplo’ — diz Lima.
O estado de São Paulo, particularmente, tem tido essa dificuldade, também porque ficou muitos anos sem concurso e porque o efetivo não foi sendo renovado. Segundo o Anuário de Segurança, a digitalização do crime agrava um problema mais profundo nas polícias, que é o sucateamento da polícia civil para concentrar atividades na corporação militar.
“A mensagem é clara: é preciso reforçar o trabalho de investigação criminal feito pelas polícias civis brasileiras”, diz o relatório do FBSP.
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