“Nem um traque!”
Transitava-se do ano de 2001 para 2002. O então governador Jorge Viana estava no auge da popularidade. Sem assumir publicamente, pelejava-se para se reeleger. O mote público era percorrer todo o Acre fazendo as famosas “Plenárias Populares”.
Na Assembleia Legislativa, o deputado João Correia (liderança do, à época, PMDB) esbravejava denunciando o óbvio: o governador fazia campanha antecipada. Oficialmente, a retórica do Palácio Rio Branco se esforçava no argumento de que o governador “fazia uma avaliação da execução das políticas públicas nos municípios, perguntando diretamente para as pessoas”.
Na prática, o séquito da campanha era grande. Acompanhavam o governante, parlamentares da base aliada na Aleac, parte da bancada federal integrante da Frente Popular do Acre (FPA) e amigos do então Governo da Floresta.
Eles aproveitavam essas viagens das Plenárias Populares para minar os opositores, todos reunidos pelo empresário Narciso Mendes e Flaviano Melo no Movimento Democrático Acreano, o MDA. (Anos mais tarde, Mendes definiria como “que bichinho bem organizado foi aquele MDA!”) E foi mesmo. Fato é que o Acre, naqueles anos divididos, cabia todo nas duas siglas: FPA e MDA. Era o tempo em que João Correia entrava no plenário da Aleac com esparadrapos na boca, denunciando o que ele chamava de “falta de liberdade de imprensa e de expressão”, para deleite dos repórteres-cinematográficos que o filmavam com o sorriso doce da vingança.
Naquela manhã de sábado, havia seis táxi-aéreos no aeroporto de Cruzeiro do Sul esperando a comitiva governamental. A ponte aérea daquele dia era para a cidade de Porto Walter. Era lá que aconteceria o olho no olho com o cidadão para saber se ele, o povo,
“estava aprovando ou não o governo da Frente Popular
”.
A imprensa era parte estratégica do rito. Um avião era exclusivo para o transporte das equipes. As primeiras aeronaves partiram. No grupo da imprensa, ia o coordenador de todo o programa das Plenárias Populares, o agrônomo e militante Carlos Alberto Araújo, saído das trincheiras da extensão agrícola para promover a “revolução”, agora na fronteira institucional.
Na prática, era um Chefe de Gabinete Civil, costurando relações políticas de toda ordem. Boa praça, apreciador de versos e bons tintos, Carlos Alberto era chamado carinhosamente pelos jornalistas de “Cacá, o Príncipe”, uma alusão ao velho professor italiano, divisor das fronteiras da Ciência Política.
Não é exigir muito imaginar o grau de mobilização comunitária que o então prefeito de Porto Walter, Neuzari Pinheiro, conseguiu organizar. Veio gente Rio Juruá acima e abaixo por dois dias para participar da festa. “Cacá, o Príncipe” tinha controle de quase tudo. Cuidava de cada detalhe. Sabia do grau de exigência do chefe que gostava de chamar o nome dos interlocutores no meio da plenária pelo apelido. E claro que quem lhe informava sobre o apelido correto era sempre Cacá.
O avião começou a sobrevoar aquela vila com status de município. A charmosa igrejinha, a quadra poliesportiva recém construída e motivo de orgulho recente da comunidade, o imponente Rio Juruá. Tudo visto do alto tinha uma cor diferente. Quando o barulho da aeronave chamou a atenção dos presentes à quadra, local onde aconteceria a Plenária Popular, Neuzari Pinheiro não teve dúvidas. “Menino, corre lá com o Manelzinho e diz pra ele tocar fogo que o homi chegou!”.
Era o que Manelzinho queria. Tinha preparado tudo, embalado por umas doses de cana.
Estava só esperando a ordem. Quase Porto Walter explodiu em fogos de artifício. Quem estava na quadra vibrava com aquela euforia toda. Teve gente que aplaudiu só pelo entusiasmo daquela cena: o barulho do avião sobrevoando uma cidade sempre esquecida e que agora recebia o governador com aquele estampido todo, a música tocando, o mestre de cerimônia falando coisas bonitas. Era emoção pura.
A aeronave teve que dar cinco voltas na região da pista de pouso, tamanha a quantidade de fumaça que circundou o local. Quando o avião conseguiu, finalmente, aterrisar, o primeiro a descer do aparelho foi “Cacá, o Príncipe”. Já saiu sorrindo. O prefeito Neuzari veio ao encontro todo alegre, receber a visita tão ilustre.
“Neuzari, rapaz! Tudo bem? Ajeita tudo porque o homi tá vindo aí!”
“Ué! Ele não tá contigo, não?”
“Esse aqui é o avião dos jornalistas, cabra! Vai lá logo… ajeita os fogos que o governador já vem no outro avião.
E os repórteres cinematográficos, que tinham descido do avião já apontavam as câmeras para a aeronave que, de fato, surgia no horizonte.
“Vixe, Cacá! Não tem mais nem um traque! Queimamos tudo!”
Cacá apertou os olhos prevendo problemas e sorriu. Não restava mais nada. O jeito era sorrir olhando para o prefeito.
Quando Jorge Viana desceu da aeronave ainda conseguiu sentir o cheiro da fumaça dos fogos. Já compreendera que, naquele dia, o reinado dele em Porto Walter teve o silêncio como recepção.
O prefeito Neuzari passou ao lado de um repórter que ouviu a seguinte fala:
“Vixe, Cacá. O homi tá com os beiços pelas canela…!”
“Cala a boca! Bora, vai lá cumprimentar o homi para os fotógrafos!”
Um repórter registrou tudo.