Crônicas da Folia
Suspeitas
Marães Câmara era um dentista por demais conhecido para passar despercebido por qualquer lugar, apesar da aparência comum. Baixa estatura. Magro. Cabelos pretos, lisos e poucos. E outras duas características que eram suas marcas registradas: o bigodinho caprichosamente malandro e a voz fanhosa, que denunciava, por onde passava, uma inquietude e uma pressa danadas pelo prazer e pela risada. Um boêmio nato.
Necessário dizer que ser dentista na Rio Branco do fim dos anos 70 era quase ser uma autoridade com passaporte diplomático. Frequentava todos os ambientes sem receio de nada.
Ainda mais com a companhia parceira de tantas farras, Garibaldi Brasil. Era uma dupla necessária e presente em muitas crônicas da imprensa local.
Nos idos de 77… 78, Rio Branco vivia em convulsão social. O êxodo rural, com a falência dos seringais, os conflitos agrários provocados pela ação dos “paulistas” e a consolidação da pecuária faziam a cidade se transformar em miséria e em desorganização urbana. João Eduardo fazia barulho na periferia e os freis marianos organizavam as Comunidades Eclesiais de Base.
Essa Rio Branco cheia de contradições fantasiava a tristeza no Carnaval. Mesmo quem não podia, espremia o sangue ralo e os poucos cruzeiros do bolso na compra de roupas com as cores certas para desfilar o orgulho anual: o sofrimento de um ano inteiro acochados em quatro noites que poderiam ser eternas.
O Vermelho e Preto, baile do Atlético Clube Juventus, reunia a elite. Tinha essa fama. O Vermelho e Branco, a festa rival, também tinha boa dose de glamour. Mas era mais popular. Era inegável. Era visível. Mesmo porque, o Rio Branco já tinha uma história mais longa, ao contrário da turma juventina, recém chegada à cena carnavalesca.
Pois eis que foi em uma noite do Vermelho e Branco que Marães Câmara resolveu iniciar os encantos mais cedo, ainda no período da tarde. E não foi em um lugar qualquer. Foi lá pelas bandas do Papoco. Era uma conhecida região de meretrício da cidade. Todas as mulheres do Papoco já tinham os ouvidos calejados de promessas. Inclusive daquelas feitas por Marães.
Quando se aproximava das 10 horas da noite, o dentista olhou para o relógio. Sabia que o baile começaria em breve. Decidiu levar duas “cocotes” para o salão. “Nada mais justo”, calculou. Predial, uma figura controversa da comunidade do Papoco, estava no bar com o seu blackpower poderoso e seu charme enigmático. Antes de sair do bar com as companheiras, Marães confidenciou alguma maldade ao ouvido de Predial que sorriu, com a safadeza típica de um macho que calcula.
Entre risadas e tropeços, Marães Câmara chegou com as duas moçoilas na frente da imponente e iluminada sede do Rio Branco Futebol Clube. Estava radiante naquela noite. A banda ainda não havia iniciado pra valer, mas a movimentação era grande na frente do clube.
E lá vêm os três. Marães ao meio, já anunciando a presença com a voz fanhosa e imperial.
E foi caminhando com toda a alegria e autoridade de tantos outros carnavais para a entrada do clube, quando foi surpreendido pelo chefe da segurança do baile, acompanhado de outros dois colegas. Sisudos. O chefe, mais velho e menos carrancudo, abriu os braços.
_ Doutor Marães! Boa noite!
_ Égua! Que porra é essa?!
O homem se aproximou do dentista, diplomata da boemia acreana, em tom quase confidencial, como se quisesse evitar problemas.
_ Doutor Marães, o senhor não vai poder entrar!
_ Quem disse? Por que não?, estranhou o diplomata.
_ Doutor Marães… essas moças…!
_ O que têm essas moças?
_ São mulheres suspeitas, não são, Doutor Marães? São moças de condutas duvidosas!
A banda começou pra valer.
“Daqui não saio/ Daqui ninguém me tira…”
Bêbado, Marães arregalou os olhos ao terminar de ouvir a sentença do chefe da segurança do baile. Na sequência imediata, espremeu o rosto ao olhar para um lado e outro e ver aquelas duas mulheres lindas e sorridentes, apesar de tudo.
_“Conduta duvidosa” têm as que estão aí dentro. Essas aqui são putas mesmo!
A gargalhada de quem estava tentando entrar e ouviu o debate foi geral. Marães e as meninas não se deixaram abater. Viraram as costas para o Vermelho e Branco. Continuaram rindo e tropeçando em todas as cores pelas ruas e por outros salões de Rio Branco naquela noite.
“Atravessamos o deserto do Saara/ O sol estava quente e queimou a nossa cara…!”