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Maria das Neves: Um lindo dia para morrer! (A Saga de Uma Mulher)

Por
Astério Moreira

Em 1975, Maria das Neves, com pouco mais de 40 anos, foi diagnosticada com câncer de mama. Por esse tempo, ela já era mãe de oito filhos, quatro homens e quatro mulheres. Teria sido de nove, não fosse sua primeira filha falecer poucos dias após o nascimento. Ela enfrentou a dor dessa perda, mas conseguiu se recuperar. Com o tempo, se tornou ainda mais resiliente e forte. Surpreendentemente, apesar de ter tantos filhos, seu corpo exibia traços marcantes de sua juventude. O câncer, seria sua maior prova de fé em Deus.


Ela veio do mato…


Aqueles que emergem da floresta e do mato possuem uma compreensão mais profunda dos propósitos de Deus. Aceitam o destino, permitindo que suas dores e perdas os aproximem do Criador. São agraciados com o dom da humildade e uma fé sincera, ingênua e pura, moldada através do trabalho pesado, de uma disciplina moral e da vida árdua na floresta. Essa observação faz lembrar Lew Tolstoi em sua obra “Uma Confissão”, referindo-se à prática da fé do cristianismo ortodoxo pelos mujiques (camponeses) na Rússia dos Czares.


Como Tolstoi, é possível perceber a fé pura nas pessoas que viviam na floresta. Eles veem a divindade nas adversidades, aceitando suas dores como parte do caminho sagrado. Esta é a verdadeira força de sua fé. Não há espaço para murmúrios, queixas ou reclamações. Costumam responder sem pestanejar: É a vontade de Deus. São felizes vivendo assim. É muito comum viveram mais de 80 anos contrariando até a ciência, já que seriam mal alimentados.


A ideia de que a floresta e os animais estão separados, com o homem sendo o primeiro fruto da criação, não existe. Ao contrário, na contemplação, percebem que tudo é uma única entidade, interligada pelo mesmo espírito. A natureza deu origem ao homem – ela veio antes e merece ser reverenciada. A natureza é a primogênita, isso é perceptível, embora a arrogância de alguns possa obscurecer tal verdade. É compreensível. Eles são como crianças. Para quem vive na floresta, homem e natureza são a mesma coisa. Tudo é uno.


Embora Maria das Neves, na infância e adolescência, tivesse medo do eco de seus próprios passos nas trilhas e caminhos de seringa na floresta, ela se transformou em uma mulher audaz e corajosa. Dotada de uma fé inabalável, que nas horas de aflição transbordava como as enchentes do rio que tanto admirava. Seu corpo delicado abrigava um espírito forte. Sempre pronta para ajudar alguém.


Cachoeira, seringueira, tempo e vida…


A casa de madeira dos seus pais, no Seringal, estava posicionada no topo de um barranco muito alto, oferecendo uma vista panorâmica do rio que se transformava a cada estação. As águas alternavam entre as cheias do inverno e a estiagem do verão. O local, denominado colocação Cachoeira, (Seringal Carmem), era envolvido por uma floresta densa, com uma pastagem verde em uma pequena clareira. No fundo da propriedade, cortada por um igarapé, revelava-se uma atmosfera agradável e de beleza incomum. Durante a vazante, uma corredeira potente surgia no rio Acre em frente à casa, justificando o nome colocação da Cachoeira até aos dias de hoje.


Uma majestosa seringueira se erguia em frente à pequena casa, posicionada estrategicamente perto do precipício. Ela se assemelhava a um obelisco apontando para um céu estrelado nas noites sem lua. A visão noturna era magnífica e esplêndida. Dependendo do ângulo de visão do observador, o céu parecia beijar a copa das árvores e da seringueira. Estrelas cadentes traçavam caminhos no céu nas madrugadas geladas, sempre que o véu de nuvens não escondia a visão do cosmo.


Acerca da seringueira na frente da casa, cujo robusto tronco permanece como testemunha ao longo dos anos, a mãe de Maria das Neves costumava dizer relembrando toda uma vida na Cachoeira:


_ No pé daquela seringueira falei com Deus muitas vezes aconselhando meus filhos ao decidirem ir embora para cidade em busca de seus sonhos e de uma vida melhor.


A seringueira realmente era grande. Não podia ser diferente, foi regada com lágrimas, orações e súplicas de uma mãe que não conhecia nada a não ser árdua vida na floresta. A imponente seringueira testemunhou confidências, risos, dores, tristezas e lágrimas. E assim, tornou-se mais que uma árvore, foi o refúgio de uma mulher resiliente, um símbolo de resistência e esperança, forjado nas profundezas da floresta e no coração de uma mãe. A mãe de Maria das Neves morreu aos 94 anos de idade como uma rocha na cachoeira do rio.


A antiga seringueira testemunhou o nascimento, crescimento e partida de cada um dos filhos e filhas que se casavam em busca da realização de seus sonhos de uma vida mais próspera. Pergunta-se qual vida superior à cidade poderia proporcionar àqueles nascidos no seio da floresta? A verdade é que todos se foram. Maria das Neves foi uma das primeiras a deixar a Cachoeira. Um jovem da cidade, filho de comerciantes, se encantou por ela e veio buscá-la na selva para se casar. Viveu por quase 50 anos até sua morte.


Por fim, os idosos pais de Maria das Neves, exaustos, também partiram, deixando em algum lugar do tempo e do espaço a memória do que um dia foi um paraíso após o Éden, conhecido como colocação da Cachoeira.


Um fato marcante…


Depois de sofrer a perda da filha recém-nascida, nos primeiros anos de casamento, Maria das Neves procurou assistência médica. Na minúscula cidade, situada no coração da floresta, havia apenas um militar do Exército, alistado no Rio de Janeiro, designado para a remota região da Amazônia.


Durante a consulta, o médico tentou tocá-la de maneira inadequada. A onça da cachoeira se manifestou reagindo e confrontando de maneira assertiva. Com um dedo apontado, ela o ameaçou, mostrando que não permitiria qualquer tipo de abuso. Era meados de 1950. O gesto revelava uma mulher à frente do seu tempo.


_ Me respeite! Sou uma mulher casada! O senhor não conhece a mim nem meu marido. Dou-lhe três dias para o senhor ir embora desta cidade. Do contrário, conto tudo e ele irá atrás de você, moleque.


Consta que no mesmo dia o médico, alegando problemas particulares, sumiu da cidade com sua voz chiada e nunca mais foi visto.


Anos se passaram e a vida seguiu seu curso. Os filhos foram crescendo até que um dia ela mudou de cidade com o marido e os filhos em busca de uma vida melhor.


No mundo tereis aflições…


Como vinha dizendo, em 1975, Maria das Neves, já residente em Rio Branco, foi diagnosticada com câncer de mama, o qual precisou ser removido. No entanto, sua fé, concedida pela graça de Deus, era excepcionalmente forte. Mesmo diante de tal adversidade, ela nunca parecia abatida e desanimada.


Permanecia sempre firme e resiliente, assim como a raiz pivotante de uma seringueira, a árvore. Ela encarou a doença como uma prova de sua fé, usando-a para inspirar e encorajar outras pessoas ao seu redor. Mesmo em meio ao sofrimento, Maria irradiava esperança, mostrando a força de seu espírito.


Ela viajou para Manaus e, em seguida, para São Paulo, onde realizou radioterapia e conseguiu se curar. No entanto, 17 anos após esse período, sentiu dores em uma das coxas e procurou atendimento médico. Foi diagnosticada novamente com câncer, desta vez no útero, que precisou ser removido. Apesar dos desafios, ela continuou sua vida, dedicando-se aos cuidados dos filhos e aquecendo o coração dos netos.


Anos antes de ser diagnosticada com câncer de mama em um dia qualquer da semana, Maria das Neves estava almoçando com seu marido, sentado à cabeceira da mesa, os filhos ao redor, quando o assunto surgiu: meu último desejo quando eu morrer. Todos riram da conversa. Para Maria, falar sobre a morte era tão natural quanto falar sobre a vida. Seu marido, em tom solene, disse:


_ Após minha partida, por favor, retornem-me à minha cidade natal e concedam-me o descanso eterno ao lado de minha mãe. É lá, em minha derradeira morada, que desejo repousar. Anos mais tarde, esse pedido foi meticulosamente atendido.”


Foi então que Maria das Neves se pronunciou:


_ Certamente, minha partida será diferente. Pretendo deixar esse mundo no alvorecer, em um dia belíssimo. Peço que não me transportem de avião para qualquer lugar. Em vez de ser velada em casa, prefiro que seja na Igreja Batista da Colina, onde o Pastor Sebastião pregava (ainda está lá até os dias de hoje).


O sepultamento deve ocorrer no mesmo dia, no início da tarde. Depositem meu corpo no primeiro túmulo disponível no cemitério. Afinal, não será eu ali, apenas uma casca. Acrescento um detalhe: peço que todos mantenham a compostura, sem gritos ou escândalos. Não me matem de vergonha no meu velório. Foi o seu pedido aos filhos e ao marido.


Um lindo dia para morrer…


No início de 1994, Maria das Neves começou a experimentar alguns episódios de falta de ar. Ela foi hospitalizada várias vezes no Hospital Santa Juliana. Surpreendentemente, mesmo em meio à sua condição física debilitada, ela mantinha um espírito elevado, oferecendo consolo aos filhos e aos que a visitavam falando da bondade de Deus.


Os médicos identificaram uma anomalia indefinida entre o coração e os pulmões. Essa irregularidade poderia ser um tumor, no entanto, Maria não sentia dores. Acreditava-se que sua fé lhe concedeu essa tolerância, como se Deus a tivesse poupado. No entanto, a serenidade de Maria das Neves em face do desconhecido era inabalável. Com a fé como sua armadura, ela encarava cada dia com coragem e resignação.


Ao alvorecer, sob o sol brilhante e um céu colorido adornado com nuvens brancas de dezembro daquele ano, ela morreu como tinha predito ao redor da mesa com a família. Foi velada na igreja da Colina. Sepultada no cemitério São João Batista no início da tarde de uma dia comum, sem lágrimas, gritos de desespero como desejava. Viver bem não é sinônimo de viver muito. Aos 62 anos, ela encontrou seu descanso em um belo dia para partir.


A infância, o rio, o igarapé, a velha seringueira do topo do barranco, os bichos ficaram guardadas nas memórias dos que conheceram o caminho para chegar na Cachoeira margeando o rio… tudo se foi. Como ela dizia: _ Filhos, tudo é passageiro, tudo é efêmero nesse mundo.


Hoje, o lugar é apenas pastagem como se nunca tivesse vivido alguém naquele lugar, onde as onças vinham pegar os bichos domésticos de baixo da casa, principalmente uma velha onça vermelha do lombo preto, a maçaroca. Maria das Neves sempre contava as histórias vividas na infância no Seringal. A história dela é a de muitas mulheres que nasceram e viveram embrenhadas nas matas antes de vir povoar as pequenas cidades do Acre.


O legado…


Maria das Neves se dilatou no tempo quando desejou proteger seus filhos da dor do luto, pedindo-lhes que não derramassem lágrimas no dia em que morresse, mesmo consciente de que, nos anos subsequentes, eles chorariam de saudade de forma inconsolável. Especialmente ao amanhecer, quando o sol traz consigo conforto, esperança e fé. Para ela, a fé se renova a cada novo dia que despontava. Por isso, instou-os a abraçar a fé, a força do amanhecer e a promessa de um novo dia, transformando a saudade em memórias vivas de amor e legado.


À memória de Maria das Neves!


Com amor!


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Astério Moreira

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