João Batista, um sapateiro corcunda, residia na Major Salinas, popularmente conhecida como “Rua da Encrenca”, em Brasiléia nos anos 60/70. Sua sapataria ficava próxima ao estabelecimento comercial de Zé Neto, um homem destemido que, em vez de temer a morte, a desafiava.
Reza a lenda que Seu Zé Neto vez por outra se deitava em um caixão que havia adquirido anos atrás, esperando para conversar com a esposa de Caronte, o barqueiro do Hades (se que ela existiu). Nessa mesma rua, o avô de Jorge Viana, Virgílio Viana, viveu. Ele serviu como delegado de polícia na pequena cidade.
Nesta rua, rica em histórias singulares, cada indivíduo possuía uma narrativa distinta. João Batista, o corcunda, era conhecido por sua profissão humilde, enquanto Zé Neto era lembrado pela sua bravura. Virgílio destacava-se pelo rigor e dedicação às leis. Havia também o Sr. Antônio, apelidado de Preguiça, um ferreiro competente, mas mal-educado como ninguém. No começo da Rua da Encrenca, adjacente à Igreja Católica, morava Seu Guló, que mantinha um centro espírita renomado. Eles eram todos migrantes do Nordeste.
Cada passo na calçada se transformava em uma jornada repleta de experiências humanas que marcaram a minha infância. A rua, que iniciava com a Igreja Católica e culminava na Assembleia de Deus, do pastor Alberto, avó do desembargador Júnior Alberto, abrigava também a Igreja Batista, frequentada pela minha família…e o sapateiro corcunda, João Batista.
A sapataria de Seu João Batista era uma pequena casa de madeira pintada em um tom de azul desgastado, com espaço apenas suficiente para ele e suas ferramentas de trabalho. Passava os dias martelando solados de sapatos. Vestia uma camiseta branca desgastada e usava óculos de grau. Uma Bíblia, grande e pesada, estava sempre aberta.
Nos momentos de folga, lá estava Seu João Batista, imerso na leitura do Livro Sagrado. Além do ofício de sapateiro, Seu João era respeitado como um líder espiritual informal. Seu amor por Deus e dedicação ao trabalho eram admirados por todos em Brasiléia.
Recordo claramente que era um domingo durante os primeiros anos da década de 70. O dia estava bonito, luminoso e fresco, um daqueles dias inesquecíveis de beleza rara e ternura que preenchem o coração com bondade e gratidão.
A Escola Dominical havia terminado e todos nós estávamos reunidos para ouvir a palavra final do Pastor Paulo Souza, um homem negro que havia se deslocado do Rio de Janeiro para pregar nas partes mais remotas do país, um pastor cuja forma foi escondida por Deus.
A igreja entoava o hino de encerramento quando alguém interrompeu o culto com uma voz alta. Talvez tenha sido o Seu Antônio Preguiça que exclamou:
“Irmãos, irmãos, o irmão João Batista não está se sentindo bem! Precisamos ajudá-lo.
As crianças estavam agrupadas nos bancos da frente da igreja. De repente, todos se viraram. Irmão João Batista, o corcunda, sempre se sentava no banco de trás, como um humilde servo. Lá estava ele, com a cabeça inclinada para trás, os óculos desalinhados no rosto, e sua grande e pesada Bíblia aberta ao seu lado.
Tentaram prestar socorro, mas em vão. Naquele dia, marcado por tristeza e dor para nós (embora a Bíblia afirme que Deus se alegra quando um de seus filhos retorna ao lar), o Irmão João Batista encontrou seu descanso eterno nos braços do Pai.
Durante o culto à noite naquele mesmo domingo, experimentei uma angústia, uma melancolia e um vazio sem precedentes na minha adolescência. Nos dias que se seguiram, ao passar em frente da sapataria fechada do irmão João Batista, na rua da Encrenca, o local se encontrava deserto, refletindo a solidão em minha alma. Senti um luto intenso, não apenas pela perda, mas também pela descoberta da efemeridade da vida.
“Deixamos algo de nós para trás ao deixar um lugar. Permanecemos lá, apesar de termos partido. E há coisas em nós que só reencontraremos ao voltar.
Viajamos ao nosso encontro quando vamos a um lugar onde vivemos parte de nossa vida por mais breve que tenha sido”. (The Night Train to Lisbon).