O dia estava quente naquela manhã de 31 de julho. Renã Felipe Bezerra da Silva, 32, pai da Heloá, estava desde cedo na rua, trabalhando como Moto Uber, o mais recente refúgio para quem tenta manter alguma renda, em uma terra onde emprego formal é moeda rara. Ele estava com pouco menos de um mês naquela função.
Havia vendido um carro velho. Comprara uma moto com o objetivo de juntar algum dinheiro trabalhando como motociclista por aplicativo. Depois, venderia a moto dele e a da esposa, Rafaela Matos Lira, 27. Comprariam um carro um pouco melhor que o anterior. Esse era o plano.
O calor era intenso. A manhã estava com o ar abafado: o clima que castigou o Acre este ano. Era quase insuportável ficar com a cabeça envolvida pelo capacete naquela temperatura e ainda desviar dos perigos do trânsito de Rio Branco, capital do Acre, um estado com frota calculada pelo Detran em 346.798 veículos.
Passava pouco mais das 11 horas da manhã quando o aplicativo sinaliza o pedido de um novo cliente. Era para buscá-lo em uma das ruas nas imediações do Colégio Acreano, região central. Renã Felipe aceitou a corrida e partiu rumo ao cliente. Ao chegar ao local combinado, em pouco tempo, um jovem sobe na motocicleta, pega o capacete e eles partem. Mal havia dado a partida na moto, quando, parado em um semáforo, vê a mensagem no celular (o aparelho fica suspenso à altura do campo de visão, acomodado em um suporte preso ao guidão). “Amigo, você não está vindo me buscar?”
A pergunta foi feita pelo passageiro que acionou o Moto Uber. Renã Felipe raciocinou rápido, já desconfiado de quem sentara na garupa.
_ Você não é Fulano de Tal?, perguntou Renã ao passageiro intruso.
_ Não.
_ Você pediu Moto Uber?
_ Pedi. Não era você?
_ Acho que não. Você vai para o Segundo Distrito?
_ Não. Vou para o Abrahão Alab.
Com o cliente errado na garupa, naquele calor, aquele diálogo abafado pelo acolchoamento do capacete, a fome já apertando, Renã decidiu.
_ Eu cancelei a corrida do passageiro que eu havia aceitado pela plataforma, combinei com o passageiro já ali na garupa um preço e partimos”, lembra o pai da Heloá, mal sabendo que aquela decisão mudaria para sempre a sua vida.
Já passara das 11h30min. Renã e o passageiro seguiam pela Rua Rio de Janeiro, no sentido Centro-bairro.
_ Eu estava a uns 40 quilômetros por hora, no máximo, lembra.
Quando fez a curva do Cemitério São João Batista, não foi possível desviar da fatalidade. No sentido contrário, o empresário Caio Henrique de Oliveira Poersch, filho do advogado Florindo Poersch, dirigia um carro modelo Onix, de cor preta. Poersch invadiu a pista por onde vinham o pai de Heloá e o passageiro.
A cena é chocante. O garupa é arremessado contra uma estrutura de um canteiro de obras. Quebrou um braço e o fêmur de uma das pernas. Teve alta do Hospital de Urgência e Emergência uma semana depois.
Renã Felipe, o pai de Heloá, não teve tanta sorte.
_ Minha perna ficou presa e eu voei, lembra.
A perna esquerda de Renã Felipe foi, na prática, arrancada do corpo na altura da tíbia (canela). Mas a situação se agravou porque além de uma porção da perna arrancada, a parte de cima, entre a tíbia e o fêmur, estava esmagada. O impacto da batida também causou uma lesão no plexo braquial do braço esquerdo. Quando a lesão é leve, há tratamento e recuperação. No caso do pai da Heloá, no entanto, a batida foi tão forte que amassou também a esperança de normalidade. A imprensa à época noticiou a possibilidade de perda do braço. O que não ocorreu.
_ Mas dificilmente vou voltar a ter movimento com esse braço, lamenta, olhando para a parte do corpo presente, mas imóvel.
Ambulâncias do Samu foram acionadas. Renã acomodou a cabeça no capacete enquanto os médicos e enfermeiros manejavam o que sobrou da perna esquerda. A cena é inacreditável. A perna arrancada do corpo e com o celular na mão, consciente, avisando a esposa da tragédia.
_ Eu só pensava na minha filha. Eu só pensava na Heloá. Perdi sangue, mas não tive hemorragia. E quando, já dentro da ambulância, eu quis desmaiar e perder os sentidos, a enfermeira disse: ‘fica acordado, rapaz! Tu não disse que queria viver por causa da tua filha?’ Aquilo ali foi como se ela tivesse injetado energia pura em mim: eu acordei e cheguei consciente ao hospital.