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Como a extrema pobreza no Acre afeta o “espírito natalino”?

Por
Itaan Arruda

Como a extrema pobreza no Acre afeta o “espírito natalino”?

Itaan Arruda (TEXTO) e Dell Pinheiro (Fotos)
por Itaan Arruda

Ela é intensa e está por toda parte: seja no centro ou nos bairros da Capital, a pobreza insiste em fazer parte da rotina acreana. Nos municípios, o quadro é mais grave: não há distinção entre centro ou periferia da mancha urbana. De acordo com o IBGE, na Síntese de Indicadores Sociais, 14% dos acreanos sobrevivem na extrema pobreza. É muita gente. São exatas 126 mil pessoas. Para elas, a ideia de “espírito natalino” é algo muito distante.


Gente como Maria José de Souza, 57 anos, natural de Boca do Acre. O corpo franzino e a paciência sempre curta modelam um primeiro contato. Ela sempre desconfia das abordagens que lhe são feitas. Uma muleta como amparo dos sofrimentos, ameniza o impacto ao andar após um acidente. É uma mulher em situação de rua. E isso diz muita coisa. Mas há um elemento que chama a atenção: a forma como ela elabora o raciocínio, a maneira como fala, sugerem uma mulher que teve acesso à educação formal, que teve um convívio social muito diferente do atual.


Após percorrer o centro de Rio Branco em busca dela, o encontro ocorre em frente à Assembleia Legislativa.


_ Onde a senhora vai agora?
_ Vou almoçar.
_ Posso lhe acompanhar? [desconfiada]
_ É no Centro Pop.
_ Posso?
_ Pode. Mas pra que mesmo você quer falar comigo?
_ Quem me falou da senhora foi o Álvaro [dirigente da ONG População de Rua].
_ [um esboço de um sorriso] Ah! O Álvaro! Sei. Mas o que você quer saber?
_ Eu queria saber, por exemplo, se em uma época como essa a senhora se sente um pouco mais triste do que o normal. A senhora se sente mais triste?
_ [semblante sério] Pra mim, é tudo a mesma coisa. Não me sinto mais triste, nem mais alegre. Os dias têm sido iguais. Mesmo sabendo que a água do rio nunca para… eu sigo por aqui, do mesmo tanto.
_ E a senhora se lembra quando essa história começou?
_ Que história?
_ Essa que colocou a senhora tendo que almoçar no Centro Pop, tendo que morar na rua?
_ Eu não quero falar sobre isso.
_ A senhora dorme por onde?
_ Ali perto da Casa Natal.
_ A senhora tem filhos? Teve filhos?
_ Eu não quero falar sobre isso. [irritada]
_ Por quê?
_ Porque o abandono… faz a gente sofrer.
_ E o que não lhe faz sofrer? Quando é que a senhora se sente bem?
_ Quando eu ouço hinos [começou a cantar hino; alto, para ser ouvida].
_ A senhora frequentou igreja?
_ Muito. Assembleia de Deus. Cresci em uma igreja.
_ E se desapontou, se decepcionou?
_ Muito. O problema são as pessoas. Muita falsidade. Agora, você me dá licença que eu tenho que almoçar.
_ Onde a senhora vai passar o Natal?
_ Aqui [apontando para a equipe do Centro Pop que a aguardava para servir a marmita]. Espero que eles façam alguma coisa.


“Pra mim, é tudo a mesma coisa. Não me sinto mais triste, nem mais alegre [no Natal]. Os dias têm sido iguais. Mesmo sabendo que a água do rio nunca para… eu sigo por aqui, do mesmo tanto (Foto: Jardy Lopes)

União

pode ser apontada como um traço comum

Se existe um comportamento comum nesses momentos de apelo à emoção barata e ao consumo nada acessível aos excluídos economicamente, é possível arriscar na ideia da “união”. A palavra vai entre aspas porque ela muda de sentido, dependendo do contexto.


Um dos usuários dos serviços do Centro Pop, que nem esperou conseguir uma colher para poder começar a comer, explicou, entre um entalo e outro, o motivo de sempre estarem em grupos. Não quis se identificar. “Melhor não”, justificou.


_ Eu percebo que vocês quase sempre estão em grupos. Vai ser assim também no Natal?
_ Sozinho, a gente morre.
_ Como assim? Junto não pode dá mais confusão?
_ Pode. Mas também a gente se defende junto. Um ajuda o outro.
_ E o Natal?
_ O que tem?
_ Vai ter alguma coisa diferente?
_ Rapaz, só se o pessoal daqui [Centro Pop] fizer alguma coisa. Ou se conseguir algum para o ‘misturadinho’ e pra cana. Tem algum aí.
_ Tenho não.
_ [sorrindo, sem um único dente visível na boca, apesar da jovialidade] Tem nada pra ver!


Marielle Franco

Na ocupação Marielle Franco, a palavra “união” preserva outro significado. O lugar reúne, em uma área com pouco mais de dois hectares, 103 famílias. Até conquistar a parceria do Governo do Estado e do Governo Federal, muita luta aconteceu.
“Os homens do governo vinham e diziam: ‘o governo vai precisar dessa área. Vocês aqui são poucos. Uma andorinha só não faz verão’”, lembra Raquelene dos Santos, 33 anos, mãe de duas meninas, uma de 15 anos e outra de apenas 4. Raquelene e as filhas foram as primeiras moradoras do local. “Minha filha mais nova tinha nove meses quando cheguei aqui, há três anos”.


Atualmente, depois de ameaças de despejo, de pressão de facções criminosas, a comunidade tem conseguido superar as dificuldades com o método e o apoio do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. “Eu tenho o costume de dizer que o MTST nos educa, nos orienta a reivindicar os nossos direitos da forma correta”, reconhece Raquelene dos Santos.


Hoje, o trabalho em comunidade, responde por uma cozinha solidária, parcerias com secretaria de Estado de Assistência Social e Conab. Além disso, construiu um compromisso político que perfaz o Governo do Estado, parlamento federal e Governo Federal para que sejam construídas 98 casas e 126 apartamentos pelo programa Minha Casa Minha Vida, modalidade Entidades.


Na ocupação Marielle Franco, o Natal reforça uma união que já existe como formação dos moradores e construção do próprio espaço


Após um dos momentos mais tensos de ameaças de reintegração de posse, o governador do Estado visitou a comunidade. Foi até a Cozinha Solidária onde são feitas 200 refeições diárias, por cinco equipes distintas de cozinheiras. O cardápio é variado e ninguém entra no lugar se não tiver com touca.


No dia 22 de dezembro, eles já se organizam para fazer um bolo grande para atender a todas as famílias que se servem todo dia na Cozinha Solidária. No dia 23, todos seguem para um dia de lazer no Sesc/Bosque.


Paróquia São Marcos

Outro lugar onde a palavra “união” preserva o sentido de luta coletiva e de unidade de ação é na Paróquia São Marcos. Coordenada pelo Pe. Massimo Lombardi, a comunidade é muito ativa. Assim como na ocupação Marielle Franco, o problema da insegurança alimentar é grande.


A comida geralmente atende a necessidade de 100 pessoas. Todo o material é doado por amigos e simpatizantes da paróquia e do trabalho do padre, descarte de supermercados e pelo programa Mesa Brasil, do Sesc.


Tanto no Marielle Franco quanto no Cidade do Povo, há famílias extremamente pobres (renda diária, por pessoa na família, abaixo de R$ 10,80). Mas a maior parte é formada por famílias pobres (renda diária por pessoa da família interior a aproximadamente R$ 105). No Acre, de acordo com o IBGE, são classificadas como pobres 460 mil pessoas. Para famílias com esse nível de renda, a insegurança alimentar é, na prática, uma certeza.


Padre Massimo dialoga com poeta Aldemar Paiva

Durante apresentação da iluminação natalina feita pela Prefeitura de Rio Branco, o Pe. Massimo Lombardi notou uma ausência. “Onde está o festejado?”, perguntou, fazendo referência à ideia do Menino Jesus, o símbolo maior do Natal. O excesso de luzes e cores, convidativos ao universo de consumo, nenhuma relação guarda com a imagem de Esperança expressa na figura do Jesus menino.


A postura filosófica e pastoral do padre muito se aproxima com o espírito crítico do radialista, poeta, jornalista alagoano, Aldemar Paiva, morto há quase 10 anos, no Recife. No poema “Eu não gosto de você, Papai Noel”, a revolta de um menino pobre expõe o quanto essa época do ano pode ser agressiva quando não se atenta para os valores corretos e que respeitam a história do filho de José, o carpinteiro, e de Maria.


Eu não gosto de você, Papai Noel!
Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade,
jogavam pedra nessa fantasia.


Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz,
sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente
e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou.
Dias depois, meu pobre pai, cansado,
trouxe um trenzinho feio, empoeirado,
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou:
“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção.


Alegre e inocente nesse caso,
eu pensei que meu bilhete com atraso,
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda,
ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez.
O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco:
“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”.


Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
e como quem não quer abandonar
um mimo que nos deu, quem nos quer bem,
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”.


Meu pai calou-se e pelo rosto veio
descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído,
mamãe gritou ele não deu ouvidos,
saiu correndo e nunca mais voltou.


Você, Papai Noel, me transformou num homem
que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.


Meu pobre pai doente, mal vestido,
para não me ver assim desiludido,
comprou por qualquer preço uma ilusão,
e num gesto nobre, humano e decisivo,
foi longe pra trazer-me um lenitivo,
roubando o trem do filho do patrão.


Pensei que viajara,
no entanto depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fôra preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia,
entrou na cela e o libertou pro céu.


Aldemar Paiva


Itaan Arruda

Jornalista, apresentador do programa de rádio na web Jirau, do programa Gazeta em Manchete, na TV Gazeta, e redator do site ac24horas.


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Itaan Arruda

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