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Chegada do Linhão a Cruzeiro e a pedagogia do diálogo

A reportagem especial da edição deste domingo (3) do ac24horas trata de um problema evitado no Acre. Trata também de soluções conquistadas com disposição para o diálogo, com paciência, com cálculo. A continuidade da instalação da linha de transmissão de energia elétrica entre Feijó e Cruzeiro do Sul (o famoso “linhão”) teve momentos de muita tensão, de “diferenças de potenciais” que poderiam trazer o caos para o Vale do Juruá, caso não tivesse chegado à síntese que se chegou. Explica-se.


A linha de transmissão precisava chegar a Cruzeiro do Sul. Houve licitação. Houve empresa vencedora. Havia contratos em jogo. Havia também projetos já feitos e paralisados. Havia decisões da Aneel. Como diz a juventude atualmente, tinha “de um tudo”. Tinha também uma terra indígena no meio do caminho da linha de transmissão: a Terra Indígena Campinas Katukina, homologada desde 1984. E é neste ponto da conversa que o ac24horas chama a atenção do leitor.


A empresa transmissora, ao invés de fazer dessa situação um problema, transformou em algo positivo para todos. Havia um projeto que contornava a terra indígena. Esse projeto estava paralisado havia dois anos aproximadamente. Contornar a terra indígena, ao contrário do que possa parecer, não é uma demonstração de respeito. Bem ao contrário. É como se ficasse consolidado o raciocínio “não mexa com índio”. O que, em si, é um raciocínio excludente. Fazer com que a linha de transmissão contornasse a terra indígena também seria uma forma de matar os 814 txáis que moram nos 32.624 hectares do lugar tão especial para o povo Noke No’í.


Ter a linha de transmissão como “vizinha” seria matar o povo Noke No’í: a pressão por invasões aumentaria em todo o trecho. Seria, para o povo indígena, uma espécie de linha da morte, sem exagero. E eles sabem disso. Tantos os empreendedores quanto, sobretudo os Noke No’í. Foi o momento de maior tensão nas discussões entre os representantes da empresa e do povo indígena. O conflito estava posto. A tensão estava posta.


Nesse instante que a disposição para o diálogo mostrou força. Tanto por parte do representante da empresa quanto do cacique Poá Noke No’í. A síntese a que se chegou foi: melhor fazer com que a linha de transmissão passe por dentro da terra indígena. Ter a linha passando nas entranhas do lugar é menos impactante do que tê-la como vizinha.


O que aconteceu ali, naquela conversa de caciques, deveria ser pedagógico para muitos episódios aqui do Acre cuja concepção é de intolerância e de negação com as comunidades indígenas, suas histórias e suas culturas.


Não fosse essa disposição para o diálogo, cidades como Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Rodrigues Alves continuariam utilizando a queima do óleo diesel para fazer funcionar as termelétricas que abastecem a região. Energia mais cara e poluente. A linha de transmissão chegando à segunda região mais populosa do Acre insere o cidadão, o comércio e a incipiente indústria local em uma agenda mais compromissada com o que se convencionou chamar “energia limpa”.


De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética, o Brasil possui 212 sistemas elétricos isolados espalhados em sete estados da federação. São 3 milhões de consumidores que geram uma fatura alta para todo o país pagar. O Vale do Juruá tirou esse peso dos ombros. E essa nova situação, em boa medida, foi construída com o diálogo.


Algum leitor mais cético poderia argumentar, apressadamente: “Ah… mas ‘dando o rodo’ pela terra indígena, o linhão chegaria do mesmo jeito”. É verdade, mas chegaria mais caro. E como “não existe almoço gratuito” alguém arcaria com esse aumento no custo. E adivinha quem seria?


Os programas e projetos de mitigação executados na terra indígena estão transformando o espaço, como aponta a reportagem. Os interesses do capital sempre estarão presentes, seja por dentro, por fora, ao lado, acima ou abaixo. Seja em terra indígena ou não.


O que é necessário atentar é para o valor que se pode construir quando um lado do balcão tenta ouvir o quem se esforça em dizer algo do outro. Os Noke No’í sempre gritaram o que queriam. Cruzeiro do Sul, o Juruá e o Acre todo nunca estiveram dispostos a ouvir. Agora, eles foram ouvidos.


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