Protestos em vários pontos da periferia mostram que insatisfação é grande e queda de energia é o grande desafio a ser superado. Veja os vídeos com depoimentos dos moradores
No Acre, há duas “Energisas” bem distintas. Existe uma Energisa que dialoga com o modesto setor produtivo e comercial; que calcula investimento já feito no Acre da ordem de R$ 1,5 bilhão nos últimos quatro anos; que reestruturou a oferta de energia elétrica para empresários que antes entendiam o segmento como um “gargalo” para a economia regional. E há uma Energisa que ainda não aprendeu a incluir o acreano; que não percebe a rotina da periferia de 79,3 mil moradores sem dinheiro para manter o pagamento em dia, nem mesmo da tarifa social.
Entre todos os presidentes de associação de moradores de bairros periféricos com que a reportagem conversou há uma unanimidade: as constantes quedas de energia são o mais grave problema nos bairros.
“A Energisa não tem tido muito respeito com a comunidade”, constata Dinho Moura, presidente da Associação de Moradores do Loteamento Raimundo Maia, nas imediações do cemitério Morada da Paz. “Como teve aumento no número de moradores, ainda estamos com estrutura de baixa tensão. Isso faz com que, em alguns momentos do dia, quando algum morador lá do fim da rua liga um ar condicionado, a energia caia”.
O problema tem sido tão constante que a comunidade perdeu a paciência. No último dia 2 de novembro, os moradores fizeram um protesto pacífico na Estrada do Calafate. “Não bloqueamos nada, mas mostramos nossa indignação”.
Protestos em vários pontos da periferia mostram que insatisfação é grande e queda de energia é o grande desafio a ser superado. Veja os vídeos com depoimentos dos moradores
No bairro Aeroporto Velho, a situação é praticamente a mesma. A comunidade reclama das constantes quedas de energia. A comunidade da Escola Flaviano Flávio Batista também protestou.
Os professores e alunos ficaram indignados com o fato de não poderem usar os aparelhos de ar condicionado mesmo em um calor de 40º. A rede elétrica não se sustenta quando os aparelhos são ligados. “Precisamos de ar condicionado que funcione nas salas de aula”, exigia um dos cartazes erguidos por uma jovem estudante. “Temos esse direito”, lembrava outro.
Neste caso específico, a responsável pelo problema não é a concessionária de energia. O problema é da Secretaria de Estado de Educação que não construiu uma espécie de subestação para resolver o problema.
O secretário de Estado de Educação, Aberson Carvalho, contesta esse raciocínio. “Eu vou fazer a subestação. Já autorizei a construção que, neste caso específico, deve custar algo em torno de setecentos mil reais”, assegurou o secretário, antes de fazer a seguinte ressalva. “Mas há escolas, inclusive próximas da Escola Flaviano Flávio Batista, em que foi construída a subestação, mas a energia cai do mesmo jeito”. O secretário entende que há um problema na estrutura da rede elétrica. Sem ar condicionado, o jeito é improvisar com ventiladores.
Facções, “gatos” e energia_ Moradores de bairros como Ayrton Senna, Aroeira, Wilson Ribeiro, Laélia Alcântara sabem como é difícil manter o pagamento da fatura de energia elétrica, mesmo sendo beneficiados com a fatura social. A maior parte depende do programa Bolsa-Família.
“Aqui o problema que mais sofremos é com o preço da energia mesmo”, diz um morador do bairro Ayrton Senna que não quer se identificar por causa das facções. “Se não temos dinheiro para pagar, fazemos ‘gato’. Outro dia mesmo, pouco depois da alagação, teve um rapaz que tomou choque fazendo ‘gato’. Não morreu, mas quase vai”.
A Energisa, há um mês, aproximadamente, teve que acionar a Polícia Militar para poder entrar nesses bairros e efetivar os cortes de consumidores inadimplentes. As equipes da distribuidora de energia entraram, praticamente, escoltadas. Ou operam dessa forma ou não entram nessas comunidades.
“Aqui, eles não dão trégua”, afirma o presidente da Associação dos Moradores do Aeroporto Velho, Negão da Baixada, negando a existência de “gatos” na comunidade e reforçando a fiscalização da concessionária. “É o tempo todo fiscalizando”, diz com a autoridade de que milita no movimento popular há 40 anos.
Em setembro deste ano, a Agência Nacional de Energia Elétrica e a Agência Nacional de Telecomunicações apresentaram uma revisão da regulamentação de compartilhamento de infraestrutura entre os setores de energia elétrica e de telecomunicações. Traduzindo: tentam colocar ordem nos postes de todo o país. Está aberta para consulta pública.
A cena impressiona pela desorganização. Não é uma exclusividade acreana. O problema é comum em todo país: fios da rede elétrica dividem espaço com fios de telefonia, incluindo internet via fibra. O resultado gera, no mínimo, insegurança para quem olha a cena.
Uma alternativa para esta situação é instalar uma rede subterrânea. “O problema é que isso custa oito a dez vezes mais caro do que a rede convencional”, compara o presidente da Energisa Acre, Ricardo Xavier. “Teríamos que construir galerias como estrutura para receber a rede”.
A responsabilidade de fiscalização dos fios que estão irregulares é da concessionária de energia elétrica. Mas a retirada desses fios é da empresa de telefonia. De uma maneira geral, é possível afirmar que é proibido manter pontos de emenda ou sobras técnicas desses fios em postes.
O presidente da Federação das Indústrias do Acre, José Adriano, e o presidente da Associação Comercial e Industrial do Acre, Marcello Moura, admitem que o setor elétrico melhorou após privatização.
“Não conseguimos nem lembrar de como era o caos de 2018 pra trás”, compara Adriano. “Vivíamos um dilema: como crescer sem uma matriz energética sólida?”. O empresário entende que os investimentos da Energisa trouxeram impacto na conta de energia, mas que também trouxe resultados positivos para a qualidade.
O presidente da Associação Comercial e Industrial do Acre, Marcello Moura, também analisa que, para o setor comercial, a distribuição de energia deixou de ser um problema grave para os empresários. Com pouco dinheiro circulando no mercado local, o varejo vai se adequando como pode e ampliação de negócios é uma agenda rara na iniciativa privada acreana.
“Hoje, o comércio está se segurando para não fechar as portas. Faturamento em queda, margens [de lucro] apertadas, juros altíssimos, aumento das parcelas dos financiamentos que foram feitos para tapar buracos das crises”, contextualiza Moura.
Sobre a infraestrutura energética continuar a ser um “gargalo” para o crescimento das empresas locais, Marcello Moura é direto. “Não mesmo”.
Vivíamos um dilema: como crescer sem uma matriz energética sólida?
José Adriano
A infraestrutura do segmento de energia elétrica no Acre mudou nos últimos sete anos. Mas foram nos últimos quatro, após a privatização, que a qualidade da prestação dos serviços foi percebida. E há uma razão matemática para isto. De 2019 a 2022, a Energisa contabiliza R$ 1,5 bilhão de investimentos no Acre.
Uma comparação pode dar dimensão da capacidade de investimento. Em 2017, ainda como Eletroacre, foram investidos R$ 31,6 milhões na empresa de distribuição de energia elétrica. Em 2023, estão previstos R$ 490 milhões. A capacidade de investimento foi multiplicada por mais de 15 vezes.
E foram esses números que reverteram uma concepção praticamente cristalizada nos representantes do setor produtivo e comercial da região: a de que o segmento era um “gargalo” ao crescimento econômico do Acre. Em quatro anos, o cenário mudou. “Nós não temos nenhuma demanda reprimida”, calcula o diretor-presidente da Energisa-Acre, Ricardo Xavier.
Ao afirmar isso, Xavier está sugerindo, com refinada ironia, que na mesa dele não está acumulada nenhuma pilha de projetos de empresas locais esperando que a distribuidora garanta as condições para o empreendimento iniciar operações. É como se ele estivesse dizendo “Há fábricas a serem instaladas? Há empresas a serem ampliadas? Há usinas a serem construídas? Apresentem o projeto que eu garanto distribuição”. Quase cinco anos após a privatização, o jogo se inverteu: há oferta do produto; o que falta é comércio e indústria demandando energia elétrica. Resumindo a mudança: se o Acre não aquece a economia regional, o segmento da energia elétrica não tem nada a ver com isso.
Nós não temos nenhuma demanda reprimida
Ricardo Xavier
Esse cenário de investimentos no segmento da energia elétrica já ocorria antes da privatização. Bem mais modesto, mas ocorria. É preciso ressaltar e reconhecer. Entre 2017 e 2018, por exemplo, o Governo Federal investiu R$ 73,3 milhões. Esse montante foi responsável pela formulação de projetos da então estatal que até hoje estão em atividade, sobretudo no interior do estado.
Na sequência, entre 2019 e 2021, já como Energisa, a empresa investiu R$ 586 milhões. E foi preciso ser ágil na transformação desses recursos em ações práticas porque, mesmo com o setor produtivo desaquecido, corria-se o risco de a região voltar a uma velha rotina, já bem conhecida dos moradores da Capital. “Em 2019, foi construída em seis meses a Subestação Alto Alegre”, lembra Xavier. “Sem ela, Rio Branco entraria em racionamento”.
Entre o fim dos anos 70 e início dos 80, havia energia elétrica nas residências da Capital até por volta das 22 horas. O retorno da energia elétrica acontecia aproximadamente às 5 horas da manhã. Era comum as mães alertarem os filhos: “Venha para casa antes das 10 porque é a hora que eles desligam o motor”. Voltar a essa rotina seria um retrocesso, mesmo em um lugar com o comércio e a indústria tão incipientes.
Atualmente, a Energisa possui, na Capital, cinco Subestações: São Francisco, Tangará, Taquari, Alto Alegre e Floresta. E o risco de racionamento foi excluído.
Desafio rural_ O diretor-presidente da Energisa-Acre assegura que um dos maiores desafios da empresa hoje, no Acre, é garantir a chegada da energia elétrica na zona rural. A dificuldade para ampliação nessas regiões é a falta de infraestrutura rodoviária. O velho problema dos ramais intrafegáveis. É possível imaginar o quanto isso deve exigir de planejamento para garantir manutenção da rede no verão ou no inverno.
Isso é tão grave que a empresa teve que se adaptar: adquiriu postes de fibra de vidro (mais leves e adequados para transportar em ramais esburacados ou enlameados); comprou carros especiais adaptados para terrenos com muita lama para garantir manutenção da rede elétrica em áreas isoladas e tem barcos no pátio para agilizar chegada de equipes e equipamentos mesmo durante o inverno amazônico.
O presidente do Sindicatos dos Urbanitários, Marcelo Jucá, também divide em dois grupos a avaliação da Energisa após a privatização. As condições de trabalho melhoraram. Mas o principal problema a ser superado é melhorar o salário do trabalhador de nível médio.
“Essa questão de condições de trabalho, equipamentos de proteção individual, equipamentos de proteção coletiva, essa parte que tanto temos cobrado em outras empresas, com a Energisa, a gente não tem esse problema”, reconhece Jucá. “Nesse quesito, a empresa tem dado as condições”.
Para o presidente do Sindicato dos Urbanitários, o trabalhador é que vive em um ambiente de instabilidade excessiva e de desvalorização. “O que hoje nós temos grandes dificuldades guarda relação com os salários… para o trabalhador de nível médio, da parte operacional que é a eletrotécnica, eletricistas, os salários são muito abaixo”, avalia. “A gente conseguiu manter o acordo coletivo da época da Eletroacre. Então, só para se ter uma ideia: o ticket alimentação ele chega a ser quase o valor do salário de um eletricista.
Jucá afirma que tem cobrado, nesses quase cinco anos que a empresa está aqui, mas não conseguiu avançar. “Agora mesmo em uma discussão sobre Participação dos Lucros e Resultados, nós estamos insistindo na mesa de negociação de que eles precisam ter um olhar voltado para esses trabalhadores da parte operacional, do Ensino Médio. São eles que fazem o trabalho nas regiões mais difĩceis. Nos cinco anos que a empresa está no Acre, eles só deram lucro. Mas uma parte desse lucro precisa ser investida nos trabalhadores”.
Na Travessa São Pedro, Nº 111, no bairro Alto Alegre, mora o carpinteiro Antônio Carlos Costa de Souza, 51. Ele, dois netos pequenos, um cachorro e dois gatos dividem o calor e a humildade na casa de dois quartos e uma sala. Pode-se chamar de “cozinha” ao lugar onde acomodaram uma geladeira, sem uso há dois meses, e um fogão, também quase sem serventia, tamanha as ausências do lugar. A carcaça de um aparelho de som destoa da simplicidade do ambiente. “Tá escangalhado”, explica. Aparelhos elétricos funcionando efetivamente só há um televisor e dois ventiladores.
"Como é que eu pagava uma conta de luz de setenta reais até outro dia e a conta aumenta para cento e cinquenta e agora essa de mais de duzentos e trinta", pergunta. "Eu só tenho uma televisão, dois ventiladores e três bicos de luz. É tudo".
Para receber a reportagem, Antônio Carlos apressou-se em pegar uma pasta surrada com elástico já frouxo onde organiza o orçamento doméstico estruturado no Bolsa-Família. Tira do emaranhado de papéis velhos três contas de energia elétrica: uma de R$ 70 e as duas últimas mais recentes: do mês de outubro, de R$ 154 (ainda não paga) e a de setembro de R$ 232,67 (que dificilmente será paga).
A situação de Antônio Carlos tende a piorar. Há pouco mais de 20 dias, fez uma cirurgia para retirada de um tumor no pescoço no mutirão realizado na Fundação Hospitalar do Acre. “Quando eu saio no sol, tudo aqui incha”, explica, mostrando a região do pescoço de onde foi retirado o material. Até que o pós-operatório finalize e a biópsia seja concluída, o carpinteiro não tem como voltar ao trabalho normal. Por enquanto, ele só tem duas certezas: o dia do pagamento do Bolsa-Família chegará e “os homi da Energisa” (sic) também. Ele aguarda.
Jornalista, apresentador do programa de rádio na web Jirau, do programa Gazeta em Manchete, na TV Gazeta, e redator do site ac24horas.
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