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Esporte e direito à identidade de gênero: as iniciativas legislativas homotransfóbicas

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A proibição de discriminação por identidade de gênero, direito humano e fundamental afirmado tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, é cada vez mais desafiada pela crescente ofensiva antidireitos LGBTQIA+.


Exemplos disso se espalham por todo o país, como demonstram propostas legislativas (em nível federal, o Projeto de Lei nº 2.200/2019; em nível estadual, o Projeto de Lei catarinense n. 16/2023) e inclusive legislação já aprovada em Boa Vista (RR). Tal lei estabelece o sexo biológico como único critério para definição de gênero em competições esportivas oficiais municipais [1].


A lei municipal ainda prevê a desclassificação e/ou multa das entidades desportivas que descumprirem a lei, a anulação de prêmio ou título de equipe que possua atleta transgênero dentre seus integrantes e estipula o banimento do esporte de atletas trans que se inscrevam em competição e omitam sua condição de pessoa trans.

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Tais medidas, manifestações de discriminação transfóbica, são inconstitucionais, revelando-se ainda atécnicas e desatualizadas.


Leis municipais de tal teor, de início, padecem de nulidade formal, por extrapolarem a competência legislativa sobre assuntos de interesse local e não suplementarem legislação federal e estadual (artigo 30, I e II, CF); isso porque o desporto está inserido dentre as matérias de competência legislativa concorrente entre União, estados e o Distrito Federal, de modo que cabe à União a edição de normas gerais sobre a matéria, e aos Estados e ao Distrito Federal a edição de normas suplementares, sem prejuízo da possibilidade de legislarem de forma plena sobre matérias em que inexista legislação federal que trate do assunto (artigo 24, IX, parágrafos 1º, 2º e 3º, CF).


Não podem os municípios desconsiderarem a existência da Lei n. 9.615/1998 (Lei Pelé), que institui normas gerais sobre o desporto, e da Lei nº 14.597/2023, que institui a Lei Geral do Esporte. Na Lei Pelé, o desporto é visto como direito individual e tem como um de seus princípios base o da democratização, garantido em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação (artigo 2º, III). Nessa mesma linha, a Lei Geral do Esporte dispõe que a democratização, a inclusão, a liberdade e a participação são princípios fundamentais do esporte (artigo 2º, II, X, XII e XIII), e estipula que todos(as) possuem direito à prática esportiva em suas múltiplas e variadas manifestações (artigo 3º).


A inconstitucionalidade também é material. Acaso fossem válidas, tais iniciativas seriam uma exclusão de pessoas trans do exercício do direito fundamental de praticar esportes, sendo que algumas chegam a postular a anulação de prêmios e títulos já conquistados, num efeito estigmatizantes que se pretende até retroativo!


A jurisprudência do STF tem sido firme na afirmação dos direitos LGBTQIA+: declarou a inconstitucionalidade de leis municipais que proibiam a divulgação de material com informação de “ideologia de gênero” em escolas municipais (ADPFs 457, 460 e 526); decidiu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia e determinou que a conduta está albergada no crime de racismo (Lei 7.716/1989) até que seja editada lei sobre a matéria (ADO 26); reconheceu às pessoas trans, independentemente de cirurgia ou da realização de tratamentos hormonais, (1) o direito à alteração de prenome e (2) sexo diretamente no registro civil (ADI 4.275); autorizou a doação de sangue por homens gays (ADI 5.543).


A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, decidiu que a expressão “outra condição social” do artigo 1.1 da CADH, que trata sobre o direito ao gozo de direitos sem discriminação, abarca a orientação sexual e a identidade de gênero (caso Atala Riffo e Filhas vs. Chile) e determinou que absolutamente todos os direitos civis sejam reconhecidos à comunidade LGBTQIA+ (Opinião Consultiva 24/2017).


No plano internacional, atletas trans podem disputar as Olimpíadas desde 2004. No entanto, as regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) inicialmente exigiam a cirurgia de redesignação genital. Essa obrigatoriedade deixou de existir em 2015, quando a entidade revisou suas diretrizes [2] e deixou de impor a cirurgia por “ser inconsistente com novas legislações e noções de direitos humanos”. Passou-se a determinar, então, que as atletas trans permanecessem com os níveis de testosterona dentro do limite de 10 nanomol por litro de sangue nos 12 meses anteriores à competição. O limite também precisaria ser obedecido durante todo o período de competições, sob pena de suspensão.


Em novembro de 2021, uma nova diretriz para a regulamentação dos atletas transgêneros foi divulgada pelo Comitê Olímpico Internacional baseada em dez princípios norteadores. Entre eles está a não presunção de que esses atletas teriam vantagens competitivas até que evidências científicas robustas provem o contrário. Na ocasião, excluiu-se o critério previsto na Declaração de Consenso de 2015 — pautado apenas na quantidade de testosterona no sangue e unificado para todos os esportes. Agora caberá às federações internacionais o dever de desenvolver seus próprios requisitos de elegibilidade e participação de atletas transgêneros e intersexuais.


O documento denominado Guia do COI sobre Justiça, Inclusão e Não Discriminação com Base na Identidade de Gênero e Variações de Sexo orienta as entidades esportivas sobre como criar e implementar critérios de elegibilidade para competições masculinas e femininas de alto nível, com ênfase na inclusão de atletas transgêneros e atletas com variações de sexo e substitui as declarações anteriores sobre o assunto [3].


O direito à igualdade, portanto, consiste na exigência de um tratamento sem discriminação odiosa, que assegure a fruição adequada de uma vida digna. Trata-se de uma igualdade que busque o reconhecimento de identidades discriminação, subjugadas injustamente por setores hegemônicos. Implica também no dever de promover a igualdade, o que traz como consequência um dever constitucional de criar condições para igual participação na vida em sociedade.


No esporte, como em outros âmbitos da vida em sociedade, a identidade de gênero e a orientação sexual tem importância fundamental em muitos aspectos de suas vidas. A população LGBTQIA+ continua a experimentar estigmas danosos e enfrenta vários encargos pessoais e sociais relacionados à saúde física e mental, altas taxas de suicídio, exclusões familiares, discriminação, falta de moradia e emprego, marginalização e barreiras ao acesso a serviços públicos que demandam apoio governamental direcionado. Há 14 anos consecutivos, o Brasil é o país que mais mata travestis, mulheres e homens transexuais no mundo, de acordo com o relatório desenvolvido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). De 80 países reunidos no projeto internacional Trans Murder Monitoring, quase 40% (1.741 de 4.639) das mortes registradas entre 2008 e 2022 ocorreram no Brasil. Além disso, houve 14 casos de suicídio, o que representa uma média de uma morte de pessoa trans a cada 34 horas, e dá a essa população uma expectativa de vida de 35 anos (enquanto da população geral é de 74,9 anos) [4].


Iniciativas legislativas que atentam contra direitos humanos e fundamentais de pessoas LGBTQIA+ na vida social em geral, e em particular restringem sua participação na esfera esportiva, acionando discriminação baseada no gênero, só reforçam esse quadro de violência e injustiça.

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 é desembargador federal no TRF-4, mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor do mestrado e doutorado da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura (Enfam).


 é procurador da República no Acre e coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+ da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF).


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