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Indicadores sociais apontam incapacidade de reação por parte do poder público e sociedade civil organizada

Por
Itaan Arruda

“O problema é que a gente não consegue trabalho”

Por Itaan Arruda

Indicadores sociais apontam incapacidade de reação por parte do poder público e sociedade civil organizada

Setembro foi um mês comum no Acre: 417.814 pessoas atendidas pelo programa Bolsa-Família, com um benefício médio de R$ 744,65 entre as 132.149 famílias atendidas. Isso resultou em um repasse de exatos R$ 97.314.877,00. Os dados consolidados são do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e detalhados pelo Boletim do Fórum Empresarial de Desenvolvimento do Acre.


Entre as quase 418 mil pessoas atendidas, 101.228 eram crianças e 23.111 adolescentes. São essas pessoas que o Governo do Acre se orgulha de atender por meio do Prato Extra, o programa que dá ao estudante acesso à uma alimentação a mais nas escolas estaduais, mesmo no período de férias.


“Não há melhor política social que não seja o trabalho”, contabiliza o coordenador do boletim e coordenador do curso de Economia da Universidade Federal do Acre, Rubicleis Gomes da Silva.



Rubicleis Gomes da Silva, da Ufac, destaca geração de postos de trabalho como “melhor política social” (Foto: Arquivo)

O raciocínio do professor faz referência à fala do ex-presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, representante, nos anos 80, de uma teoria econômica chamada neo-liberalismo.


Um dos fundamentos desta teoria assegura que a intervenção mínima do Estado na Economia provoca menos injustiças sociais. E que a regulação entre demanda e oferta se consolida naturalmente por meio da ação do mercado.


Observe o leitor que a referência não é a “emprego”. O raciocínio é que as empresas, reguladas pela ação exclusiva do mercado, promovem a riqueza. O desafio dessa concepção econômica por aqui é: “como abrir mão da participação do Estado em uma economia em que a população é pobre ou extremamente pobre?”


De acordo com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o CADÚnico no Acre, em setembro, registrou 395.064 pessoas em situação de pobreza, o que abarca 136.101 famílias. Em todo o Acre, o Governo Federal contabilizou 34.587 famílias de baixa renda (R$ 550 por integrante da família).


“Isso demonstra um ambiente de renda muito concentrada, baixo crescimento do PIB e alta taxa de pobreza”, avalia o professor. “Não circula dinheiro que não seja relacionado à manutenção da máquina pública, com altos salários no setor Judiciário, entre os militares, fiscais da Fazenda e entre os políticos”, pontua Rubicleis. “O servidor público de cargos mais modestos tem a mesma média salarial que é praticada na iniciativa privada”.


A linha de raciocínio do acadêmico aponta para um quadro que deveria chamar atenção dos gestores públicos. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados registrou saldo positivo no Acre, em julho. Houve 4.213 admissões e 3.472 demissões. Portanto, um modesto saldo de 741. Isso evidencia uma economia que arqueja.


É a sustentabilidade desse mercado de trabalho que preocupa o coordenador do curso de Economia. “Um doze avos das pessoas está entrando no mercado de trabalho, está entrando na População Economicamente Ativa aos 16 anos. Ocorre que a quantidade de empregos é muito inferior às necessidades”.


ATENDIMENTOS BOLSA FAMÍLIA - ACRE / SETEMBRO 2023

Pessoas atendidadas
0
Valor médio do benefício
R$ 0
Recursos repassados
R$ 0 M

Bolsa-Família expõe gravidade da exclusão social e econômica no Acre ao longo do tempo

O Bolsa-Família aumenta a importância no Acre ao longo do tempo. Os gráficos abaixo mostram a inserção do programa em três situações pontuais, fazendo um recorte a partir de abril de 2017. Estão representadas nos gráficos a quantidade de famílias com renda per capita (por pessoa na família) mensal acima de meio salário mínimo; quantidade de famílias de baixa renda e a quantidade de famílias beneficiárias em situação de pobreza.


De abril de 2017 até agosto de 2020, o Bolsa-Família oscilava entre 85 a 88 mil famílias beneficiárias. Em dezembro de 2020, quando foi criado o Auxílio Emergencial, a quantidade de famílias atendidas caiu praticamente a zero. Foi um dos períodos mais críticos porque as famílias mais pobres ficaram ainda mais vulneráveis no ambiente marcado pela pandemia de Covid-19.


A situação voltou à média em abril de 2020.


Com um agravante, em dezembro de 2021, a economia brasileira não consegue reagir ao ambiente de crise. E quando o ambiente de crise econômica fica mais intenso, o gráfico do Bolsa-Família cresce. Em dezembro de 2021, o Acre ultrapassou a marca das 100 mil famílias atendidas pelo programa de distribuição de renda federal.


Em abril de 2022, com o governo de Jair Bolsonaro mergulhado em crises, a economia patinava e um novo pico de benefícios era alcançado. Em dezembro de 2022, após as eleições e o país polarizado politicamente, a economia, mais uma vez, demonstrava anestesia e incapacidade de reagir. O Acre teve mais de 125 mil famílias atendidas.


Mesmo comportamento_ Os gráficos do Cadastro Único (CADÚnico) formam, praticamente, as mesmas curvas do programa Bolsa-Família. O Cadastro Único é a porta de entrada para as famílias pobres ou extremamente pobres conseguirem acessar programas de distribuição de renda ou programas de benefícios continuados do Governo Federal.


O Acre ultrapassou a marca das 126 mil famílias registradas no CadÚnico. Na prática, isso resulta em, aproximadamente, 504 mil pessoas.


Qual impacto desse cenário sócio-econômico na Saúde Pública?

Ainda não há formulado, de maneira clara e precisa, uma espécie de “mapeamento da fome” ou “mapeamento da insegurança alimentar” no Acre. Os técnicos da Secretaria de Estado de Saúde falam de uma forma genérica que o problema é mais presente “nas comunidades ribeirinhas e indígenas”. O que existem são dados sobre situações correlatas que podem indicar a fome ou a insegurança alimentar como fator causal.


Por exemplo: doenças de transmissão hídrica e alimentar. A Secretaria de Estado de Saúde entende que há dois desafios urgentes: melhorar o controle da qualidade tratada pela Saneacre (atualmente, o entendimento é que esse controle é falho) e educar as famílias para uso intradomiciliar da água.


Resumindo: onde a água da Saneacre chega (e ela não chega nem para a metade das famílias do interior do Acre), não se tem o controle devido da qualidade. Além disso, quando a água chega às torneiras das casas, o manejo é inadequado. Isso provoca uma série de doenças. Doenças diarreicas agudas e leptospirose são exemplos.


Pedro Pascoal, da Sesacre, pontua que fome e insegurança alimentar são influenciados pelo regime de cheias dos rios (Foto: Sérgio Vale)

“Essa questão da fome e da insegurança alimentar varia de acordo com a época do ano, por causa do regime de cheia dos rios”, pondera o secretário de Estado de Saúde, Pedro Pascoal. “Nesse período agora de seca, a situação é mais grave nos municípios isolados, como Marechal Thaumaturgo, Jordão, Santa Rosa, Porto Walter”. Já no inverno, as comunidades com esse problema se ampliam.


Leptospirose mesmo na seca_ A leptospirose acomete muitas famílias mesmo durante o período de estiagem. A seca promove a concentração da água em determinados lugares. Há municípios que são abastecidos com água de açudes e não por rios. A água que a comunidade utiliza tem a mesma fonte que muitos animais usam também.


“Dos 22 municípios do estado do Acre, 19 (86,36%) apresentaram aumento e 3 (13,64%) apresentaram queda no número de notificações, comparado ao mesmo período de 2022”, afirma o boletim informativo sobre Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar. Porto Acre (385,71%), Brasileia (115,44%), Marechal Thaumaturgo (100,36%), Plácido de Castro (91,92%) e Bujari (85,13%) registraram maior aumento.


Fonte: Sivep-DDA/SES/DVS/DVE/NDTHA (atualizado em 02/10/2023), sujeito a alterações.

Campanha distribui 800 mil frascos de cloro

A Secretaria de Estado de Saúde elabora uma campanha em rede social e em meios de comunicação de massa para explicar para as famílias como deve ser usado o hipoclorito de sódio (o popular cloro).
A campanha também vai informar como deve ser o manejo adequado dos alimentos, vai tratar da importância da hidratação e do uso do soro caseiro


“O problema é que a gente não consegue trabalho pra ela”​

Solair Pereira da Silva tem sete netos, três filhos e 50 anos de teimosia. Chegou no Acre em 1983, com apenas 9 anos, vinda da cidade de Formosa D’Oeste, no Paraná, onde nasceu. O pai cansou de trabalhar em terra alheia, como arrendatário. Queria um canto seu e para os seus.


A menina Solair instalou-se com a família no Ramal do 13, em um assentamento agrícola. Brasileia agitava-se por causa dos conflitos agrários em todos os cantos e com vários sotaques. As arengas por causa da terra foram consequências de uma política de expansão da pecuária, estimulada pelo Governo do Acre desde os anos 70.


De fala marcante, Solair não titubeia para dizer o que pensa ser correto nos dias atuais. Mas isso foi uma construção que levou tempo. Ainda menina, nas tarefas do roçado marcado por um mundo de homens, crenças, empates e choro, ela precisou carpir o próprio espaço. Cresceu, precisando deixar as coisas limpas e claras, sem paciência para muitas dúvidas.


Foi engrossando o couro no sol, em um ambiente em que a Educação era quase um luxo. E isso lhe moldou uma defesa que leva para todo lugar: 


A Educação está aí. Aproveita quem quer. Agora, se não quer estudar, tem que trabalhar"



Solair é a favor de laqueaduras entre jovens: para evitar que façam “coisas erradas” Foto: Sérgio Vale

Veio para a Capital ainda jovem. O filho mais velho foi assassinado. Era usuário de drogas, mas trabalhava. Esta disposição para qualquer tipo de ocupação que o jovem tinha a faz acreditar que ele não era envolvido com facções. “Uns dizem que sim, mas ele era trabalhador”, acredita.


Uma filha de Solair está presa na ala feminina do Presídio Francisco de Oliveira Conde. É uma jovem de 29 anos, presa por aliciamento de menores. Dependente química antes de encarar a prisão, a jovem já esteve em dificuldades graves. É mãe de cinco dos sete netos de Solair. “Por isso, sou a favor de laqueaduras entre jovens para evitar que façam ‘coisas erradas’. Sou a favor, sim”, diz a mulher, cansada depois de uma noite de trabalho no plantão do hospital. A voz firme e quase sempre em um tom imperativo, se sufoca com o choro ao narrar a própria história em vários momentos da conversa. “É tudo muito difícil”.


O filho mais jovem de Solair vive com ela em uma casa da Rua Vertente, bairro Vitória, periferia de Rio Branco, onde ela passou a morar há mais de 20 anos.


Mesmo trabalhando na faxina da UTI do Hospital da Criança durante a noite, Solair arranjou tempo e carinhos para criar também uma menina de 18 anos. “É mais geniosa e parece que já está se aproximando na escola de quem não deveria”, alerta. “Já paguei cursinho caro pra ela, que foi uma luta pra pagar as parcelas. Mas paguei, mas ela só frequentou seis meses. O problema é que trabalhar hoje em dia, principalmente para quem tá começando, precisa ter passado pela escola. Outro dia tinha uma vaga de doméstica, mas estavam exigindo Ensino Médio e ela ainda não terminou o Ensino Médio”.


Solair lembra que já inscreveu a menina no programa Jovem Aprendiz, já tentou, já insistiu, já teimou, mas não consegue trabalho para a jovem. “O problema é que a gente não consegue trabalho pra essa menina”. Há quase dois anos ela peleja para que a jovem encontre uma ocupação.


Na “parte alta da cidade”, onde Solair mora, há forte atuação de facções criminosas, um encanto que ronda as casas, disponível para acolher jovens vulneráveis como a filha caçula de Solair. O aliciamento de jovens para o tráfico feito pelas facções é tão concreto, tão próximo, que faz parte da cena em qualquer canto, de qualquer bairro.


Limpando o chão da UTI do Hospital da Criança, ela vê e ouve o choro de várias mães, jovens. Algumas ainda quase meninas. Naqueles leitos, Solair sabe que muitas daquelas lágrimas não são pela dor de parir e jamais por alegria. Nessa rápida entrevista, as estatísticas oficiais tomam cores e formas concretas na rotina de uma entre tantas trabalhadoras acreanas.


ac24horas: A senhora já tentou muitas vezes procurar emprego para a sua filha mais nova?


Solair: Muitas. Já inscrevi no Jovem Aprendiz. Já fui em tudo quanto é canto. Mas a gente não encontra trabalho pra essa menina.


ac24horas: Mas ela tem ao menos o Ensino Médio?


Solair: Não. Olhe… já paguei cursinho caro pra ela. Foi uma luta pagar as parcelas, mas ela só foi por seis, sete meses. Na escola dela, ao invés dela ficar junto de pessoas boas… por exemplo: teve uma delas lá que conseguiu emprego no Araújo. Eu falo ‘Menina, por que tu não fica junto daquela tua amiga que conseguiu emprego no Araújo?’ Mas não! Ela quer ficar com a banda da turma que não vai dar certo.


ac24horas: Como é a rotina com as facções aqui?


Solair: [direta, sem falar muito] Nós nos damos bem. Não tenho o que falar sobre isso.


ac24horas: Você está com uma filha presa. Como é sua relação com ela?


Solair: Não há relação. Ela hoje está com 29 anos. Desde os 15, quando eu soube que ela estava usando droga, eu botei pra fora de casa. Ela deixou cinco filhos para eu criar. Isso não é vida. Olhe… não era para existir Educandário. Não era para existir essas situações todas. Esse pessoal que vive na rua tendo filho. Era para a Justiça fazer alguma coisa.


ac24horas: Como assim? O que a Justiça poderia fazer?


Solair: Fazer com que essas mulheres não tivessem mais filho.


ac24horas: A senhora é a favor de que a Justiça obrigasse essas mulheres a fazerem laqueadura.


Solair: Isso. Sou a favor, sim. Gente que teve filho no meio da rua… demora outro tanto de tempo, lá está de volta à maternidade, parindo de novo. Eu lhe digo: isso não é vida [emociona-se].


ac24horas: Os seus netos… todos vão à escola?


Solair: Todos. Olhe… eu não estudei. Mas eu vejo que, de uns tempos pra cá, estudar ficou mais fácil. A Educação está aí. A escola está aí. Não estuda quem não quer. Eu não estudei [emociona-se novamente]. Meu pai deixou de comer pra dar pra nós. Eu não preciso de muita coisa. Esses meninos têm facilidade hoje e não aproveitam direito.


ac24horas: A senhora acredita na Educação? 


Solair: Acredito. Até porque, principalmente para quem está começando agora, sem estudo tudo fica mais difícil. Outro dia, tinha uma vaga de doméstica que eu tava procurando para a minha menina mais nova… tinha que ter Ensino Médio para ser doméstica.


ac24horas: Mas a escola… a senhora avalia que é boa?


Solair: É boa. Esses tempos… outro dia não estava tendo aula, mas tinha merenda.


ac24horas: Se não fosse a escola, eles teriam o que comer normalmente?


Solair: Teriam. Uma casa com um tanto de gente desses… tem dia que não tem a mistura, não tem carne. Mas sempre tem o que comer.


ac24horas: Aqui no seu bairro, o que a senhora acha que é mais necessário?


Solair: Saúde. Eu tenho pra mim que isso é o mais necessário.


ac24horas: Os meninos estão todos vacinados?


Solair: Tão mermu! Até porque tem o Bolsa-Família, né?


Itaan Arruda

Jornalista e apresentador dos programas "Voz do Povo" (na @cidadefmac 107,1 FM 📻 ) e "Gazeta Entrevista" (na @tvgazetaac 11.1 📺, afiliada da Record TV no Acre).


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