Esta semana foi pródiga em fatos que demonstram o horror de viver sob regimes tangentes à democracia. A lista é extensa. Tivemos, assim, por cima: as estrepolias do Lula da Silva e da Canja, digo, Janja, em viagem à Índia; o menosprezo do presidente à tragédia gaúcha; as declarações horrorosas e mal remendadas em favor de Putin; os mentidos e desmentidos os ministros Dino (Justiça) e do Toffoli (STF) em relação aos documentos da ODEBRECHT; as provas indecentes de que agentes do governo na CPMI de 8 de janeiro combinam depoimentos com inquiridos; as novas e medonhas incursões do STF na seara parlamentar do Congresso Nacional transformando-o a cada dia em casa de tolerância visando normalizar o aborto, precarizar a propriedade privada e dar mamadeira a sindicatos; a compra descarada de apoio com novos e desnecessários ministérios, cargos e emendas parlamentares etc., etc., etc.
Apesar de cada uma dessas ocorrências imundas merecer laudas e laudas de análise reprobatória, fixo-me em outra que, por simbólica, além de meritória, ao contrário, tem ao mesmo tempo o aplauso e um certo signo de esperança. Refiro-me à atuação nesta quarta-feira, do Dr. Sebastião Coelho, desembargador aposentado, atualmente advogado, em defesa de seu cliente no plenário do STF, onde, indevidamente (o acusado não tem foro privilegiado), os casos estão sendo julgados comprovando o estado de exceção.
À certa altura, no encerramento de sua fala, o Dr. Sebastião Coelho disse aos presentes e à nação que aqueles que ali estavam sentados – os Ministros do STF, eram as pessoas mais odiadas do país. Os brasileiros, de modo geral, os têm como patrocinadores de injustiça. Não se trata, obviamente da Instituição que já teve gente como Sobral Pinto, Evandro Lins, Nelson Hungria, Moreira Alves, Paulo Brossard e tantos outros, mas da atuação atual, da desconfiança de extrapolação de competência e ativismo despropositado.
A fala do Dr. Sebastião Coelho como advogado, embora distante do caso, me fez lembrar a Carta de Ruy Barbosa a Evaristo de Morais que ficou conhecida como o discurso “O Dever do Advogado”. Faço a seguir um brevíssimo preâmbulo para os que não a conhecem.
Em 14 de outubro de 1911, foi assassinado o capitão-de-fragata Luis Lopes da Cruz, por dois homens (Quincas Bombeiro e João da Estiva), supostamente a mando do Dr. José Mendes Tavares. O motivo seria de ordem conjugal – as minucias não interessam ao presente texto. Certo é que o Dr. José Mendes Tavares recorreu ao Dr. Evaristo de Morais para que realizasse a sua defesa, se declarando inocente. Ocorre também que ambos eram fortíssimos adversários políticos, pois o acusado defendia ferrenhamente Hermes da Fonseca e o advogado defendia Ruy Barbosa, num tempo em que as posições políticas eram exacerbadas.
Indeciso quanto a defender seu inimigo político, homem de enorme prestígio, Evaristo de Morais escreveu a Ruy, seu amigo, a título de consulta, uma carta na qual por fim indaga: “devo, por ser o acusado nosso adversário, desistir da defesa iniciada? Prosseguindo nela, sem a menor quebra dos laços que me prendem à bandeira do civilismo, cometo uma incorreção partidária?”.
Expunha assim, o grande Evaristo de Morais, o seu dilema. O direito ou o partido? De que modo posso me esforçar na defesa daquele que por outros motivos (políticos), gostaria de ver derrotado?
Eis que seis dias após o recebimento, Ruy Barbosa responde serenamente: “Os partidos transpõem a órbita da sua legítima ação, toda a vez que invadam a esfera da consciência profissional, e pretendam contrariar a expressão do Direito. Ante essa tragédia, por tantos lados abominável, de que foi vítima o Comandante Lopes da Cruz, o único interesse do civilismo, a única exigência do seu programa, é que se observem rigorosamente as condições da justiça. Civilismo quer dizer ordem civil, ordem jurídica, a saber: governo da lei, contraposto ao governo do arbítrio, ao governo da força, ao governo da espada. A espada enche hoje a política do Brasil. De instrumento de obediência e ordem, que as nossas instituições constitucionais a fizeram, coroou-se em rainha e soberana. Soberana das leis. Rainha da anarquia. Pugnando, pois, contra ela, o civilismo pugna pelo restabelecimento da nossa Constituição, pela restauração da nossa legalidade.”
Ruy Barbosa afirmava assim o civilismo (título da corrente partidária que abraçava) gêmeo da justiça e, como tal, acima de qualquer outro interesse. Hoje, ele diria que interesses partidários não podem estar acima da Lei. Dizer em 1911 que “a espada enche a política do Brasil”, equivale a dizer hoje que ministros e seus arbítrios vermelhos inundam a praça dos três poderes. Ruy Jamais desconfiaria que pouco mais de 100 anos depois, em sentido contrário à sua devoção, um ministro do STF se confessasse partidário ao ponto de proclamar a plenos pulmões “Derrotamos o Bolsonarismo!”.
Mais adiante Ruy Barbosa assinala: “Esta exigência da nossa vocação é a mais ingrata. Nem todos para ela têm a precisa coragem. Nem todos se acham habilitados, para ela, com essa intuição superior da caridade, que humaniza a repressão, sem a desarmar. Mas os que se sentem com a força de proceder com esse desassombro de ânimo, não podem inspirar senão simpatia às almas bem-formadas.”
Palmas para o Dr. Sebastião Coelho! convocaria Ruy Barbosa nesta quarta-feira. É preciso desassombro e coragem para ser advogado, é preciso desassombro e coragem para desnudar suas excelentíssimas sem excelências, e dizer que a retórica de golpe não se sustenta porque não havia possibilidade fática de ser levada a termo. Seria matar um boi com uma bolinha de papel. Possivelmente, um processo em que o mesmo ente é vítima, delegado, promotor e juíz, impedindo grau de recurso, em prisões e sentenças sem individualização da conduta, faria Ruy Barbosa chorar de vergonha, ou de raiva.
Sebastião Coelho é a voz dos brasileiros justos, é um alerta aos políticos, é também uma bofetada em tantos advogados enfronhados nas cortinas de seda da OAB, ou nas camarilhas e corredores palacianos, inertes, passivos, enquanto o direito é dia a dia dilapidado neste país. A coragem demonstrada pelo advogado Sebastião Coelho é a simetria da covardia de tantos outros, silentes, servis.
Ficamos a ver leis sendo tratoradas, provas sendo apagadas, dribles em processos e a subversão do obvio, tudo sob as vistas daqueles que deveriam guardar a Constituição Federal, mas estão empenhados em revisá-la eles mesmos, a despeito da vontade popular e de seus representantes no parlamento. Reconheçamos, não há Ruys no Brasil, há, talvez, alguns Sebastiões, e há uma vassalagem infinita, cada um esperando a migalha que em algum momento cairá do banquete dos poderosos.
Valterlucio Bessa Campelo escreve às sextas-feiras no site ac24horas e, eventualmente, no seu BLOG, no site Liberais e Conservadores do Percival Puggina e outros sites. Quem desejar adquirir seu último livro “Desaforos e Desaforismos (politicamente incorretos)” pode fazê-lo por este LINK
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