A semana que terminou ontem, sábado (19), foi intensa. E nada houve de mais grave no debate público do que a reintegração de posse da comunidade Terra Prometida. Este espaço já tratou do assunto. Já falou da inabilidade do Governo do Estado na condução de todo processo. Hoje (20), o motivo da análise amplia o problema.
É preciso enxergar essa situação da Terra Prometida como algo muito mais grave. Não é um problema episódico, pontual, isolado. É sistêmico. Neste aspecto, a falta de habilidade do atual Governo do Acre passa a ser residual. Dito de forma mais direta: o problema não é causado pelo governo de plantão.
A começar pelo atual déficit habitacional do Acre, estimado pela secretaria de Estado de Habitação e Urbanismo em algo próximo de 24 mil unidades. É evidente que essa quantidade de casas não deixou de ser construída nos últimos quatro anos e oito meses. É uma herança de muitas décadas.
Uma empreitada que remonta a luta de gente como Moacyr Grechi, João Eduardo, Bacurau, José Marques de Souza (o Matias), Domingos Ribeiro Crispim (estes já mortos), Leôncio Asfury (Padre Asfury), Chica Marinheiro, Massimo Lombardi e tantos outros. O que o site ac24horas alerta é que o esforço dessas lideranças, a história de vida delas tenta apresentar o fortalecimento da vida em comunidade, em uma missão anti-sistema, anti-exclusão, anti-injustiça.
O espírito de trabalho dessas lideranças citadas ainda não se perdeu. Enfraqueceu, é verdade. Mas não está morto: a reação comunitária presente nas ocupações Terra Prometida e Marielle Franco comprova isto.
Um aspecto que precisa ficar claro nessa luta é diferenciar “invasão” de “ocupação”. Não se trata de uma questão meramente semântica. Muito menos de retórica. Em uma ocupação, as decisões são tomadas de forma coletiva; as decisões são resultados de discussões em assembleias. Há formação política (atenção: formação política e não estritamente política partidária); há trabalho em comunidade. Uma ocupação ocorre em área pública que não cumpre os princípios constitucionais básicos.
Uma Emenda Constitucional, a nº 26, foi formalizada há 23 anos. Trouxe avanços nessa percepção de que a moradia é um direito social básico, elementar.
Se existe área pública que pode ser usada para este fim e não está sendo por incompetência ou ingerência, cabe aos movimentos sociais intervirem a despertarem as comunidades para o poder público ser pressionado e apresente propostas concretas. O direito à moradia digna é resultado de conquistas. Não é a consequência da benevolência de lideranças carismáticas e populistas.
De acordo com a Fundação João Pinheiro, uma referência no país quando o assunto é política habitacional, o Governo Federal calcula que o problema é mais grave nas regiões Norte e Nordeste. Com destaque para Amapá (17,8%); Roraima (15,2%); Maranhão (15,25%); Amazonas (14,82%); Pará (13,55%).
Repare o leitor na situação paradoxal que o Acre apresenta. O lugar que tem um déficit estimado pelo próprio governo estadual em 24 mil unidades habitacionais é o mesmo cujo Censo de 2022, do IBGE, registra 58 mil imóveis desocupados. Desses 58 mil, 65% (algo em torno de 37,5 mil) estão vagos e 20,3 mil são ocupados ocasionalmente.
Em um passeio mais cuidadoso por vários conjuntos habitacionais da Capital isso é perceptível. Há casas em áreas residenciais que estão inabitadas, quase intocadas desde a entrega, sem nenhuma intervenção há 30, 40 anos. O mato só não tomou de conta porque a prefeitura garante a roçagem vez por outra. Por esses dados apresentados pelo Censo do ano passado, percebe-se a falta da política pública estadual para este segmento da gestão.
A reocupação desses espaços poderia fazer com que o governo evitasse o erro de modelos de política habitacional como o Cidade do Povo. Aquele modelo ali está esgotado. Guardava lógica para uma cena da gestão pública nos anos 60, 70. Atualmente, os urbanistas entendem outro formato como adequado. Sobretudo para beneficiar as famílias mais vulneráveis.
A ordem atual é (falando de uma maneira muito genérica): famílias mais abastadas devem procurar morar em locais mais afastados dos centros urbanos. Às famílias mais vulneráveis, as unidades habitacionais devem estar mais próximas do centro da cidade possível.
Há muito a ser discutido sobre o assunto. E o que se percebe é a pouca disposição para o diálogo. A imagem de um “sniper” durante o cumprimento da ordem judicial solicitada pela secretaria de segurança pública, faz com que qualquer argumento oficial não pare em pé.