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O vale-tudo do trânsito mostra que somos uma comunidade adoecida

Por
Irailton Lima

Algumas características são marcadores importantes do estado de um fenômeno, um ser ou uma comunidade. O encurtamento do período chuvoso aqui na Amazônia, por exemplo, é um importante marcador do fenômeno das mudanças climáticas. Assim como o trânsito é um importante marcador do grau de sanidade de uma comunidade.


Pelo trânsito fluem as pessoas numa cidade, seja por meio do transporte coletivo, dos carros, das motos ou mesmo dos pedestres caminhantes. Por ele se manifestam personalidades individuais e comportamentos coletivos. Nele convivem ricos e pobres; adultos, idosos e adolescentes; homens, mulheres e outros; brancos, pardos, negros, indígenas e tantas raças quantas a cidade absorva.


O trânsito é, portanto, uma valiosa amostra da população em suas variadas formas. Por ele é possível medir o estado de sanidade social da cidade. E, diga-se, no caso de Rio Branco, pode-se afirmar que não estamos bem.


Não se mede a qualidade do trânsito apenas pelo tempo gasto entre um ponto e outro – entre a casa e o trabalho, por exemplo. Essa é uma variável importante. Mas, ela apenas indica a qualidade da malha viária, a quantidade de veículos transitando e a pertinências das decisões de engenharia de trânsito. Não é sobre o aspecto físico. É sobre o tráfego de pessoas e veículos pelas vias da cidade enquanto um fenômeno social.


Dele, nas suas singularidades atuais, podemos extrair, no caso do Rio Branco, o quanto estamos perdendo aqueles traços que tão fortemente nos marcaram ao longo da história, como a hospitalidade, a cortesia e a solidariedade.


Lembro quando criança, em Brasileia, como era comum as famílias receberem amigos vindos dos seringais para pernoitar em suas casas. Muitas vezes mais que um pernoite: ficavam por semanas, até resolver a precisão no comércio, no INPS ou aonde fosse. O normal da vida comunitária era receber, oferecer dormida e compartilhar o feijão. Nesse ato tinha hospitalidade, cortesia e solidariedade. Aqui na capital era bem comum quando alguém na rua buscava informação sobre um enderenço, a pessoa largar o que estava fazendo para “entregar” e desorientado em seu local de destino. Cortesia e solidariedade.


Uma comunidade faz-se primeiramente de virtudes. Elas orientam as novas gerações sobre o certo e o não tão certo. O bonito é o reprovável. Virtudes como hospitalidade, cortesia e solidariedade são marcadores que indicam vida social saudável.


Faz algum tempo estou circulando pela cidade de moto. Na impossibilidade do uso de bicicleta, adotei o motociclismo como meio de transporte alternativo ao carro. Coisas do meu movimento em direção ao minimalismo – minha “pegada de carbono” reduziu em 4. Numa moto, assim como numa bicicleta, a convivência com o trânsito é mais intensa. Essa experiência tem me permitido sentir com maior clareza as doenças sociais que se manifestam na convivência das ruas. No trânsito de Rio Branco não há cortesia e nem solidariedade. O que existe são um absurdo individualismo e uma competição desesperada por um “primeiro lugar” que não se sabe o que é. O resultado visível é a luta desesperada por espaço e protagonismo. Nesse “mundo cão” não existe lei, regra ou qualquer limite; é um clima permanente de vale-tudo. E os motoqueiros estão entre os grandes responsáveis, como algozes e vítimas.


Dados do SUS apontam estar havendo, nos últimos anos, um forte crescimento do número de acidentes e mortes de motociclistas em todo o país. Outros números apontam o crescimento da comercialização de motos de pequena cilindrada. Especialistas afirmam que o crescimento do número de entregadores nas ruas tem influência direta tanto num caso quanto noutro. Entregadores ganham por produção. Precisam de rapidez e agilidade – coisas que quase sempre andam de mãos dadas com o desrespeito às regras de trânsito e o descuido com a segurança e a vida.


Mas, seria pouco razoável considerar a incivilidade do trânsito de Rio Branco responsabilidade apenas de motociclistas. Quer um exemplo do egoísmo imperante? Tente fazer uma conversão à esquerda numa rua movimentada e você verá que dificilmente alguém lhe dará a vez. Individualismo e competição!


É evidente o quanto boa parte de nós simplesmente decidiu não mais obedecer às regras básicas de convivência social. As de trânsito são apenas um exemplo. Precisamente aí entra a responsabilidade do poder público. Obedecer ou não às leis não é questão de escolha pessoal. É imperativo da vida em sociedade. No caso, o poder público vem se eximindo de realizar seu papel, já que praticamente não existe mais serviço de controle e fiscalização de trânsito. Para acabar de completar, a retirada dos radares dos semáforos fez com que, na maior parte da cidade, respeitar o sinal vermelho passasse a ser “coisa de otário”.


Como disse antes, o trânsito é um valioso marcador do grau de sanidade social de uma comunidade. E quando um organismo está doente, precisa de cuidados. O cuidador, neste caso, tem que ser o poder público por meio da prefeitura e do governo do estado cumprindo com suas obrigações, fiscalizando e punindo. No vale-tudo todos saem perdendo.


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