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O remédio, o placebo e o veneno

Por
João Correia

Nesses 70 dias de Governo, o Presidente Lula já cometeu acertos e erros, por normal.


Dentre os erros, estão: a pressão pela expansão a descoberto dos gastos públicos; o contencioso contra a autonomia do Banco Central, fulanizando grosseiramente seu Presidente; a desnecessária e inútil atribuição de golpe pela inelutável saída de Dilma Roussef da Presidência; o “acarinhamento” às ditaduras de extrema esquerda no continente; leniência “branca” com invasores de propriedade do redivivo MST; uma desnecessária e estranha belicosidade para quem deu a volta por cima etc. De fato, Lula está bem longe de ser o Mandela que alguns sonharam.


Os acertos, no entanto, são mais profusos. Com efeito, Lula recolocou, com pujança, o Brasil autorecluso e entanguido na cena mundial – de onde sumira -; reinstitucionalizou as estruturas do Estado brasileiro; conteve o extermínio dos Yanomamis; estancou as orgias dos armamentos que alimentavam milícias, o narcotráfico e toda sorte de crime organizado; e…peitou o equívoco radical da política de juros que engessou a economia brasileira nos últimos dois anos.


Sobre a trajetória da taxa de juros, nos últimos seis anos, pode-se focar em apenas dois “condottieri”: Ilan Goldfajn, do Governo Temer/ Henrique Meireles, e Roberto Campos Neto, do Governo Bolsonaro/ Paulo Guedes e de Lula/Haddad.


Ilan Goldfajn recebeu de Alexandre Tombini, do Governo Dilma Roussef, uma inflação de 9,23% e uma taxa Selic de 14,25%, em agosto de 2016, e entregou a Paulo Guedes, no primeiro dia de 2019, uma inflação de 2,76% e uma taxa Selic de 6,5%. A economia estancou a recessão e entrou em discreta recuperação. Sem dúvidas, um feito considerável de competência técnica em política econômica. Bastava dar-lhe sequência, o que não ocorreu.


Bolsonaro e Guedes empossaram Roberto Campos Neto, no Banco Central, em fevereiro de 2019, com a recusa, infortunada para o Brasil, de Ilan Goldfajn em permanecer no cargo.


A taxa Selic manteve-se em 6,5% até meados de 2019, quando iniciou um período gradual de queda. A queda da taxa Selic, por conseguinte, sob o Governo Bolsonaro, não deu-se apenas durante “et pour cause” da pandemia, não. Vem do semestre anterior a ela.


No início de fevereiro de 2020, antes do registro do primeiro caso de Covid no Brasil, a taxa Selic já havia recuado para 4,25%. Em agosto do mesmo ano ela atingiu 2%, a menor marca da história. Ficou abaixo da taxa de inflação anual, ou seja, iniciou a trajetória dos juros negativos. O resultado não poderia ser outro que não a desorganização e desproporção do mercado de câmbio, dada a fuga de divisas estrangeiras do país que financiavam a dívida pública interna, em movimentos especulativos. O real depreciou-se espetacularmente frente às moedas fortes e alimentou expectativas inflacionárias ligadas à importação de bens e serviços.


Oito ou Oitenta

Poder-se-ia argumentar com a poderosa incerteza no conjunto da economia causada pela pandemia. Mas o certo é que essa taxa Selic negativa, de 2%, se se deduzir da taxa de inflação, largamente superior, permaneceu por todo um semestre, que vai de agosto de 2020 a fevereiro de 2021. Isto foi o oito, de duvidosa eficácia.


Todavia, por idiossincrasia da gestão do Banco Central, experimentou-se o oitenta, ainda pior. Em março de 2021, a Selic danou-se a subir, gradual e ininterruptamente, por decisões do Conselho de Política Monetária, o Copom. Um ano depois, em março de 2022, a taxa rompeu a barreira dos dois dígitos, atingindo a cifra de 10,75%. No injustamente considerado aziago, agosto de 2022, ela atingiu a pornográfica cifra de 13,75%, onde teima em permanecer até os dias de hoje. E lá se vão mais 7 penosos e dramáticos meses!


E a inflação, como se comportou? Essa velha e perversa senhora nem sequer tomou conhecimento dos juros reais siderais, ou, no máximo, deu uma piscadela de soslaio ao placebo que lhe ministraram. Com efeito, manteve-se incólume num intervalo de resiliência. E os remédios – os juros reais obscenos – metamorfosearam-se em veneno. Viraram o arsênio inodoro e incolor que os ingleses ministraram a Napoleão Bonaparte vencendo-o, por fim, com a morte.


Sim, o arsênio, em doses adequadas, também pode ser remédio. Em doses altas e alongadas, mata o paciente.
Por mais potente que seja, é difícil a uma economia resistir a ataque tão letal e continuado de um inimigo que não lhe dá a mínima chance de defesa.


A Política Monetária ensina que a elevação da taxa de juros é instrumento eficiente para conter a demanda agregada da economia. Quando a matriz da inflação não repousa no excesso de demanda, como é o caso da inflação brasileira e mundial, o remédio vira placebo e se se insistir na dosagem ele vira veneno. É a situação do Brasil de hoje.


Efetivamente, há um quase consenso de que a inflação brasileira e mundial é essencialmente de oferta e não de demanda. A desorganização formidável das cadeias produtivas globais de bens e da paralisia dos serviços durante a pandemia murcharam a oferta agregada nas economias.


Por seu turno, a malfadada guerra da Ucrânia – com a explosão dos preços dos combustíveis fósseis e dos fertilizantes que diminuíram a produção de alimentos – agravou ainda mais o quadro de redução da oferta de bens e serviços mundo afora.


Juros Reais Siderais

Juros reais ( taxa nominal menos inflação ) excessivamente elevados são mortais para a atividade econômica; em verdade, são seus piores inimigos. Além de garrotear a atividade produtiva, empoça o crédito, desvia recursos de investimentos germinativos para a especulação financeira, como ensinou Keynes com o conceito de Eficiência Marginal do Capital. Carece de lógica comezinha, investimentos produtivos correrem os riscos inerentes à produção e realização de seus valores se eles podem não correr risco nenhum e obterem rendimentos líquidos de 8,5% anuais financiando a dívida pública brasileira com uma taxa Selic de 13,75%. Este é o descalabro da taxa de juros mais alta do planeta, a do Brasil, quase o dobro da segunda colocada que é a do México!


Hybris ou Despreparo?

Pela lei de autonomia do Banco Central do Brasil – além dos objetivos básicos de buscar a estabilidade econômica, manter o poder de compra da moeda e de regular o sistema financeiro – também avultam objetivos relevantes de suavizar as flutuações da atividade econômica e, principalmente, de fomentar o pleno emprego.


E o pleno emprego mencionado não combina com as elevadas taxas de desocupação dos trabalhadores e da ampla capacidade ociosa presentes e renitentes na economia brasileira.


A permanência dessa taxa de juros insana no Brasil é absolutamente insustentável e deletéria. Mantê-la inalterada é atitude de larga estupidez ou de rematada perversidade e arrogância para com os brasileiros.


O Presidente Lula Venceu o Debate

O Presidente Lula pautou de forma meio destrambelhada o debate importantíssimo sobre a nociva taxa real de juros do Brasil. Foi execrado pela dogmática da grande mídia eivada de acólitos no jornalismo econômico em combinação com operadores do mercado financeiro. Tornou-se, de saída, um sacrílego e um apóstata, se comparado ao disciplinado e responsável fiscal do primeiro mandato.


Lula está errado em investir contra a autonomia do Banco Central e maltratar com rudeza desnecessária e mal educada a Campos Neto, mas está certíssimo e legitimado a investir contra os grilhões impostos à economia do Brasil pela insana taxa real de juros .
Lula obteve o apoio dos magnatas do grande capital financeiro e dos empresários produtivos sequiosos do crédito em fuga na economia brasileira. A continuar a insensatez da taxa de cume, a crise de crédito, já no radar, aprofundar-se-á perigosamente.


Ao fim e ao cabo, o mercado parece ter-se acalmado um pouco e os juros futuros já começaram a diminuir, sinais de que as expectativas dos agentes econômicos são a de que os juros reais tenderão a baixar num futuro próximo.


E o futuro próximo já tem data: dias 21 e 22 deste mês quando os hierarcas da política monetária reunir-se-ão no Conselho de Política Monetária – COPOM.


Será uma reunião de tensão. A conferir.


É tema para se revisitar, sem dúvidas.


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João Correia

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