(A história de uma reportagem)
Houve um tempo em que ao lado da Maternidade Bárbara Heliodora existia um cemitério clandestino de fetos. Os embriões mortos eram sepultados por um funcionário usando um boca de lobo que, sem rituais ou cerimônias religiosas, os colocava em um buraco raso de menos de um metro de profundidade. Sem velas, lamentos, cânticos, rezas ou orações. Sem dores. Eram só fetos, restos mortais de vidas que não vingaram. Quem se importava com elas?
O fato foi manchete do jornal A Gazeta em um domingo do ano de 1994 chocando toda a cidade. Após a denúncia, a senhora Fátima Bestene transformou o cemitério clandestino de fetos em um jardim florido e colorido, regado todos os dias do ano. Flores suficientes para a memória dos sem nome, dos sem vida, dos esquecidos em buracos rasos. Fetos de abortos espontâneos como costumeiramente ainda acontece, mas que tem o destino adequado.
O caso foi descoberto quando decidimos com alguns amigos fazer uma pescaria no verão daquele ano. Pescaria? Como assim? O que uma pescaria no rio Acre, no final do ramal Flaviano Melo, em Porto Acre, tem a ver com um cemitério clandestino de fetos na Maternidade? É que entre tarrafadas, cerveja e caldeirada na praia apareceu a ponta do novelo a ser desenrolado com uma matéria investigativa.
À época o jornal A Gazeta estourava nas bancas. As pessoas acordavam cedinho para comprar o diário. Queriam saber as notícias dos crimes, da política, esporte e cidade. O Acre e a capital Rio Branco fervilhavam no cotidiano. Produzir um jornal naqueles dias era tarefa para quem realmente amava o jornalismo. Ver a matéria estampada na capa de A Gazeta era a recompensa. Havia uma competição saudável pela manchete principal entre nós repórteres. Não era emprego, muito menos um trabalho: O jornalismo era o oxigênio de nossas vidas.
A sede ficava situada na avenida Getúlio Vargas ao lado do clube Juventus. Os jornalistas Sílvio Martinello e Roberto Vaz eram os proprietários e administradores. A rádio FM Gazeta, o escritório do Sílvio e a redação ficavam no andar de cima. Roberto Vaz sempre foi homem de redação. Para ele, produzir o jornal, que estaria nas bancas na manhã seguinte, era o mesmo que pintar um quadro, compor uma boa música, a mais pura arte. A capa do jornal, na maioria das vezes, o Vaz editava. O Sílvio fazia as Gazetinhas, reportagens especiais, nos pautava e orientava. Um maestro!
Na parte de baixo do prédio a recepção, o comercial, a cozinha, o laboratório de revelação das fotografias, referência de Sérgio Valle e Gleilson Miranda. Também os banheiros e a máquina de impressão, que funcionava a noite toda como uma padaria. Jornal é como pão, tinha que chegar nas bancas quentinho.
A redação era ampla. Na entrada, do lado direito, o arquivo de fotografias cuidado pelo Evandro. Um quartinho de madeira com uma parte de vidro de onde ele nos via chamar. Os repórteres trabalhavam em mesas de cerejeira com máquinas de escrever olivetti assentados uns de frente para os outros com um espaço vazio no centro por onde se caminhava para a diagramação do jornal que era feita em uma grande mesa pelo chargista Dim, os diagramadores Jefferson Dourado e Maxtâne.
À época, se não me falha a memória, o time era: Além dos colegas jornalistas já mencionados a redação contava com Edson Luís (de saudosa memória), Antônio Estélio, Józimo de Souza, Charlene Carvalho, Dulcinéia Azevedo, Chico Araújo, J. Edson, Manoel Façanha, Costa Júnior, Zé Leite, Chico Pop, Francisco Dandão, Antônio Carlos, o Malvadeza, Nonato de Souza, Zé Valle e o Pulga, que era o motorista da kombi. Havia, ainda, a dona Fátima na cozinha. Euclides, Ana, Rose, Socorro, Martha Maria, Pelé, além de outros da impressão e distribuição do jornal. O esforço era um só: Colocar o jornal nas bancas na manhã seguinte por cima de pau ou pedra. Depois de um dia exaustivo de trabalho, o ponto de encontro para uma pizza ou lasanha era a Malu Massas regadas a cerveja ou coca cola.
Se o jornalismo era o almoço, uma boa partida de futebol ou pescaria, a sobremesa. Ninguém precisava saber pescar, só tinha que ir. Foi numa dessas ocasiões que fui convidado para uma pescaria por um amigo, o José Ferreira, o Zezito, motorista da Secretaria de Agricultura, depois da Polícia Civil. Hoje vive aposentado em uma chácara na Baixa Verde. Me disse que um casal de amigos iria junto. Ele não lembro o que fazia; ela, enfermeira na Maternidade.
Foi durante a pescaria em uma dia de sábado, entre uns goles de cerveja e a caldeirada na praia, que ela comentou o assunto. Achava desumano o que se fazia na Maternidade. E o que se fazia na Maternidade? Agucei meu instinto. Opa! Pode ser uma boa matéria essa história. Contou que os fetos dos abortos espontâneos eram sepultados ao lado e até na frente da Maternidade. Um servidor cavava um buraco com um boca de lobo e os colocava lá, tapava e pronto.
Segundo ela, deveriam ter outro destino mais digno, apesar de serem apenas massas informes como diz o Salmo 139. Peguei na hora. O segredo de uma reportagem é ficar de bico fechado. Falar apenas para as pessoas certas que vão te ajudar no trabalho. Qualquer vazamento poderia dar tudo errado. Ficamos o dia todo no rio Acre. Voltamos ao finalzinho da tarde. Um dia inesquecível que a poeira do tempo encobriu.
Na segunda feira conversei com a direção e o editor chefe, na ocasião o Edson Luís, o Edinho. O fotógrafo Gleilson Miranda foi designado para me acompanhar. Em uma semana preparamos todo o material que foi publicado no domingo seguinte como manchete principal do jornal A Gazeta com o título: Cemitério clandestino de fetos na Maternidade Bárbara Heliodora.
Na verdade, durante a produção da matéria descobrimos que era irregular, mas não um crime. Era a prática corriqueira dos hospitais. Ninguém a ser punido ou responsabilizado. Nem mesmo o funcionário do boca de lobo. Ele apenas cumpria ordens. À época não havia preocupação nenhuma em dar um destino adequado às massas misturadas com sangue. Eram apenas bolinhas minúsculas, mas não deixavam de ser humanos que não vingaram por razões que só Deus conhece.
Depois do fato vir a público, na semana seguinte, a senhora Fátima Bestene, esposa do deputado José Bestene que, até então, era o secretário estadual de Saúde, tomou todas as providências. Como revelei no início, ela transformou o lugar em um jardim cheio de flores vermelhas, amarelas e brancas. Sua boa ação apagou a imagem grotesca de um homem cavando buracos com um boca de lobo na frente de um lugar que lembra vida, mulheres, sonhos e amor, muito amor.
Todas às vezes em que passo na frente da Maternidade me recordo de quando ali tinha um cemitério clandestino de fetos em um tempo já esquecido. Lembrado apenas na memória de uns poucos, inclusive, eu. Qual o destino hoje dos fetos de abortos espontâneos ou legais? Bom, quem sabe, seja o início de uma boa matéria…
Eu te louvarei, porque de um modo assombroso, e tão maravilhoso fui feito; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem. Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui feito, e entretecido nas profundezas da terra.Os teus olhos viram o meu corpo ainda sem forma nenhuma; e no teu livro todas estas coisas foram escritas; as quais em continuação foram formadas, quando nem ainda uma delas havia. (Salmo 139: 14-15)
O concurso público da Câmara Municipal de Sena Madureira, no Acre, registrou 1.938 inscritos para…
O senador Sérgio Petecão (PSD-AC) apresentou, nesta segunda-feira (23), o Projeto de Lei (PL) 4.972/2024,…
A 2ª Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco2), em ação conjunta com a Secretaria…
Quatro criminosos em duas motos fizeram arrastam dento de um mercadinho durante assalto na Avenida…
O Ministério Público Federal (MPF) e o Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE-AP) investigam o…
Um caminhão-tanque com ácido sulfúrico está entre os veículos que caíram no Rio Tocantins após…