Diz que se deu no seringal Oco do Mundo, lá para as bandas onde é hoje a fazenda Piratininga, São Pedro, região de Acrelândia e Abunã. Um lugar infestado de onça preta e maçaroca como nunca se viu nessa vida. Foi lá que o Zé da Preta, sei bem que o nome era esse mesmo, sim senhor, o Zé da Preta, porque a mãe dele era uma preta bonita, corajosa, destemida na faca da seringa. Uma mulher valente, tinha até duas vacas que ordenhavam leite para dar de beber aos filhos.
Alta madrugada ela já saía para o corte. Poronga na cabeça levando o balde na mão, faca, espingarda 32 atravessada no peito; sapatos de seringa, boné caqui surrado. Utilizava uma calça que nem de homem, mas, coberta por um vestido de chita ajustado ao corpo, preso pela cintura; parecia uma daquelas chinesas que se vê nos filmes antigos. Estatura mediana, pernas grossas, cintura bem-feita, seios proeminentes e braços fortes; trazia o cabelo preso por um cocó. Uma mulher bonita, apesar das marcas da vida dura e difícil que levava. Assim era a mãe dele, a dona Preta. Cortava seringa, cuidava do roçado, caçava e pescava com disposição. Tinha lá seus 45 anos.
Mãe de cinco filhos, mas viúva. O marido morreu pescando, levou três choques de poraquê cruzado no peito, ficou as marcas do bicho em cima do coração. Ela não queria se casar de novo. Dizia que era mulher de um homem só nessa vida. Pariu três homens e duas mulheres: O Zé era o terceiro. Puxou para ela. Com ele não tinha tempo ruim para nada. Por ser jovem, muito teimoso, imprudente. Dona Preta tinha muito orgulho dele. Era o que mais a ajudava nas tarefas de casa, fosse no pilão batendo arroz ou rachando lenha. Zé já tinha dado de cara com várias onças. Foi ele quem deu fé das onças pretas com as maçarocas do lombo preto encangadas, andando juntas no mato, no mês de setembro, o cio delas.
Zé da Preta sai para caçar e não volta pra casa
Aproximava o dia de Sexta-Feira Santa ele botou no juízo que iria caçar a ponto, ali por perto mesmo. Tentar matar uma embiara só por diversão porque ele não sossegava um minuto sequer. Dona Preta não concordou e advertiu o filho:
_ Zé, meu filho, acabe com essa conversa, respeite o sagrado, não vá mexer com coisas que você não conhece. Sexta-feira Santa não se tira nem leite de vaca, não se come carne, nem se varre a casa, muito menos caçar no mato. Tão pouco se penteia o cabelo. Te assossega José. Faz logo uma cruz tecida de palha de coco e prega na porta, modo espantar os maus espíritos.
A advertência da mãe entrou por um ouvido e saiu pelo outro. José foi assim mesmo sem que ela desse fé na hora. Quando procurou pelo filho ele já tinha partido pro mato por volta das oito horas da manhã. Imediatamente ela fez o sinal da cruz, rezou e pediu para Jesus Cristo e Nossa Senhor protegê-la de todo mal, do que viria pela frente. Coração de mão não mente, não se engana. Mãe tem sexto sentido. Uma mãe é pra cem filhos, mas cem filhos não é pra uma mãe. A única coisa que Preta poderia fazer era esperar e continuar rezando para que nenhum mal acontecesse ao filho.
Às três da tarde nem sinal do José. O coração dela ficou mais apertado ainda. Pensava: _ Meu Deus o que deu na cabeça desse menino de ir caçar na Sexta-Feira Santa, dia em que nosso Senhor foi crucificado? Às 18 horas, a hora mais sagrada, em que termina o dia e começa a noite, ela chamou os dois filhos mais velhos, Pedro e Sabino, e disse:
_ Peguem os cachorros e vamos atrás do José, meu coração não se engana, alguma coisa aconteceu com meu filho, já era para ter voltado…Deus tenha misericórdia dele e fez uma promessa para José pagar se fosse encontrado com vida. Seu maior medo, era ele ser comido pelas onças que, aliás, gostava de correr atrás delas batendo no balde de colher o leite da seringa. Se divertia com as onças.
Andaram cerca de uma hora na mata focando com uma velha lanterna Rayovac com as pilhas já fracas e uma poronga. Os cachorros na frente. A preocupação delas era de que os cachorros acuassem um porco do mato desviando a atenção de encontrar o José. A certa altura, os bichos começaram a latir desesperados. Era numa restinga de mata limpa, quase na beira do igarapé, onde tinha uma velha sumaúma da copa bem grande.
Os cachorros latiram numa batida diferente de quando acuam uma caça. Era o José, só pode ser ele, pelo tinido dos cachorros. Preta apressou o passo quando Sabino, apesar do foco fraco da lanterna, avistou alguma coisa e falou: _ Espia mãe, é o José tá ali caído no chão. Ao se aproximarem viram o José com a camisa toda rasgada e coberto de sangue. José gemia baixinho. Preta, experiente, procurou ferimentos nas partes vitais do filho, mas não encontrou. Caçou pelas pernas dele a marca de ferrada de cobra, também não tinha. Só mesmo as costas dele lapeadas como se tivesse levado uma surra.
Preta, Pedro e Sabino se abraçaram a José ali no meio do mato naquela escuridão. Ela chorando agradeceu a Deus e Nossa Senhora por ter encontrado o filho vivo. Os três se revezaram carregando o moço machucado até em casa. Exaustos ainda foram cuidar das feridas nas costas dele com sal. Gemendo narrou para a mãe, irmãs e irmãos o que acontecera com ele naquela Sexta-Feira Santa que jamais esqueceria.
Uma surra de cipó de fogo
José disse que depois de andar por cerca de três horas na mata só viu um bicho, um quatipuru mondé (esquilo), que é um bicho “panema”- dar azar se matar ele -, e mais nada. Havia um silêncio esquisito, nem ventava. Tudo parado mesmo. Tentei voltar para casa. Andava, andava, andava e voltava para o pé da Sumaúma grande da beira do igarapé. Cansado, me abaixei para beber água, foi quando senti a primeira lapada nas costas de cipó de fogo, dei um pulo para trás com a faca na mão, não via nada, só o mato se mexendo e o cipó rodando. Me lembrei da senhora e do que me disse para não ir caçar no dia de Sexta-Feira Santa. Pensei comigo:
_ Estou nas mãos do caboclinho da mata, valha meu Deus! Ajoelhado clamei por Jesus Cristo e Nossa Senhora, depois de umas vinte lapadas ele parou. Não sei se era um ou mais; feito isso sumiu no trecho, não consegui mais andar de tanta dor. Fiquei ali e acabei desmaiando até ser achado pela senhora, Pedro e Sabino.
_ Me perdoe minha mãe, não lhe dei ouvidos, nunca mais faço isso.
Zé da Preta cresceu, gerou filhos, filhas e netos e sempre contava essa história para eles. Sobre a promessa que sua mãe fez para ele pagar se fosse encontrado com vida, nunca revelou a ninguém qual era. Foi um segredo entre ele, a mãe, Jesus Cristo, Nossa Senhora e Deus Pai. Era o que dizia. A única coisa que os irmãos contavam sobre isso era de que todo santo dia, sempre às 18 horas, José se ajoelhava e rezava a Deus onde estivesse. Essa história correu os seringais daquela época confirmando a proibição de que não se deve ir caçar em uma Sexta Feria Santa. Os caboclinhos da mata dão uma surra com cipó de fogo.
Obs: Ouvi histórias, fatos, contos e lendas andando pelos seringais da minha terra, o Acre. Ouvi das pessoas, da gente que vive e viveu nas matas. As escrevo como alguém que pinta um quadro. O que escrevo são quadros pintados com letras. Como disse Clarice, “Não tira nada de ninguém”. Só peço aos que lerem que removam dos corações qualquer tipo de preconceito, inclusive religioso. São só histórias…quadros!
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