Foi por volta de 1985 que um chefe indígena se transformou em bicho na frente de testemunhas. Sim senhor, lá no seringal Sacado, colocação Bufeu, à época, um dos lugares mais lindos e bucólicos existentes às margens do rio Acre. Bem próximo a foz do igarapé Noaya, cuja nascente é no Peru, como a maioria dos rios que formam a bacia dos rios Negro e Solimões. O Noaya despeja no Acre, que derrama no Purus, que verte no Amazonas e se lança Atlântico adentro formando a pororoca.
Neste lugar o chefe da tribo conhecido como Mané Tiba se transformou em um bicho com patas de boi, corpo meio humano e cabeça de animal com carapaças e chifres de fazer inveja ao caixeiro-viajante Gregor Samsa, de Franz Kafka, em A Metamorfose. Gregor, depois de uma noite mal dormida acordou metamorfoseado em um inseto em seu quarto. O indígena foi de dia mesmo, numa trilha que liga o igarapé Bufeu a boca do Noaya, passando pelo Porto São Luís, onde morava uma lerda de uma sucuri de quase dez metros, antes do profundo poço ser assoreado por duas grandes enchentes que destruíram Brasiléia. Com as cheias ela se foi, mas morou anos a fio nesse lugar.
Com a chegada dos brancos nas cabeceiras do Acre no final do século XIX início do XX, aos poucos, grupos indígenas da etnia jaminawa começaram a deixar suas aldeias. Se instalaram na periferia de Assis Brasil, desceram para os seringais Porto Yunga e São Miguel e posteriormente acamparam na foz do igarapé Noaya com suas fortes corredeiras e cachoeiras.
Por esse tempo, os brancos seringueiros acreditavam piamente que velhos pajés conheciam o segredo de se transformarem em animais da floresta, principalmente os de idade avançada. Próximos a desencarnar se escondiam no meio do mato virando onças, sucuris e catetos. Em veados e macacos nunca se ouviu falar que eles se transformavam. Em gaviões e anambés, sim.
Nesses dias de verão intenso o chefe Mané Tiba acampou liderando um pequeno grupo de guerreiros, entre eles jovens, homens, mulheres, idosos e muitas crianças. O acampamento ficava do outro lado do rio Acre, na Bolívia, próximo ao poço São Luís, depois do estirão do Bom Sucesso, nas terras do seu Francisco, dono da colocação Bufeu, do lado do Brasil. Francisco vivia com uma prole de cerca de 18 filhos. Foi um seringueiro que a custa de muito trabalho prosperou e criou todos os filhos, alguns ainda residem por lá.
Francisco era um homem sábio. Conhecia muito dos segredos da floresta. Era uma espécie de protetor da região em que morava. Da floresta, do rio e dos igarapés. Conhecia da medicina, aprendera com o sogro e tio, Joaquim que, além de construtor de barcos, também receitava medicamentos, chás, rezas, mandingas e dava conselhos. Morava encostado ao barracão do seringal Sacado.
Conta-se que certa feita um pai seringueiro levou o filho de 15 anos para ser consultado com ele. O menino era fadigado, uma manimolência sem tamanho, faltava-lhe coragem para buscar água no pote. Seu Quinca, como era chamado, examinou o rapaz dos pés à cabeça, espiou os olhos, as mãos, mandou colocar a língua pra fora e aconselhou o pai a amarrar as mãos do menino para trás durante 15 dias que ele ficaria curado. Dito e feito. Ficou são e até engordou. Segundo seu Quinca, se a questão não fosse logo resolvida, o menino poderia perder o juízo e ficar biró. Também aconselhou que o rapaz deveria pensar em casar-se logo, apesar da pouca idade. O diagnóstico dele era masturbação desenfreada. Um dia, quando o dia vinha partejando, seu Joaquim, com mais de 80 anos, mergulhou no rio para um banho e sumiu para sempre nas águas do Acre. Seu corpo nunca foi encontrado.
O filho mais velho de seu Francisco também se chama Joaquim em honra ao falecido avô, mas não herdou as qualidades medicinais do ancião. Certa feita um seringueiro bateu varejão por dois dias de canoa nas corredeiras do Noaya levando a mulher com infecção nos rins. Seu Francisco, muito ocupado, depois de examinar a mulher diagnosticou infecção urinária. Mandou que Joaquim Filho entregasse um medicamento para o homem, que subiu varejando no igarapé de volta para casa, na colocação Buenos Troncos. No dia seguinte chega o seringueiro cansado com a mulher quase morta deitada no chão da canoa retorna.
_ Compadre Francisco, o remédio que o senhor mandou o Joaquim dá pra minha mulher espocou o fel dela, ela está morrendo ali na canoa, está mijando o fel, é azulado meio roxo.
O Joaquim tinha esquecido de dizer pro seringueiro que a mulher mudaria a cor da urina por conta do remédio, um tal de “uro” alguma coisa. Joaquim passou dois dias no mato escondido do pai que queria lhe dar uma surra. A mãe de Joaquim, senhora Edy, tinha orgulho do filho homem e sempre contava que ele, quando bebê, engatinhava pelo chão da casa indo mamar nas tetas de uma cadela.
_ O meu Joaquim quando era pequenos mamava junto com os cachorrinhos recém-nascidos nas tetas da nossa cachorra, por isso que ele é assim, manhoso” contava achando graça. Todos riam juntos. Havia pureza, candura e inocência naquela família. Francisco morreu aos 96 anos de idade. Dona Edy está na casa dos 80 anos em Brasiléia. Era um lar feliz e divertido, apesar do trabalho e da vida árdua em que viviam na floresta. Com a decadência da borracha, na lavoura, coleta de castanha e campo para uma semente de gado.
Como Mané Tiba metamorfoseou num bicho
Certo dia seu Francisco percebeu que tinha sumido do chiqueiro, que ficava por trás da casa, duas jabotas, dois carumbés (jabuti macho) e um barrão de engorda de uns 200 quilos. Logo desconfiou dos indígenas liderados por Mané Tiba que estavam acampados na boca do Noaya, ali perto. Mandou os filhos chamarem o chefe indígena para uma conversa séria. Cerca de uma hora de caminhada pela mata margeando o rio.
_ Olhe compadre Mané Tiba, eu ajudei vocês, levei o pessoal da saúde para vacinar contra o sarampo, já dei roupa e até comida. Mas sumiu minhas jabotas, meus carumbés e o barrão de engorda. Quero saber de chefe se alguém de lá da aldeia pegou meus bichos.
_ Nom, cumpadi Chico, nom, nom, caboco nom pegou jabota, carumbé e barrão de cumpadi, indígena nom faz isso, cumpadi… nóis nom rouba cumpadi Chico, se defendeu em um português arrastado.
_ Vou acreditar em cumpadi, mas não quero vocês andando nas minhas terras sem minha permissão. Podem caçar e pescar à vontade, mas não bolinar nas minhas coisas.
Francisco disse isso ordenando que dois de seus filhos escoltassem o chefe indígena pela trilha que margeia o rio até o porto São Luís, de onde ele atravessaria o rio Acre para a boca do Noaya, lugar da aldeia. A trilha ficava bem no aceiro da mata, dividindo um campo e a floresta ciliar. Mais ou menos na metade do caminho, Mané Tiba parou de uma vez e deu grito na língua jaminawa assustando os dois rapazes que morriam de medo da “macumba dos indígenas”. Coisa que ouviram contar. Um indígena com raiva deixava o sujeito com a pele toda pintada. Não foram poucas as criaturas com vitiligo apontadas pelo povo nas cidades do Acre dizendo ser trabalho espiritual de pajé indígena. “Não mexa nem zombe deles menino que vão te deixar com a pele toda pintada”, era o que nos diziam quando crianças. Uma lenda do século passado que muitos acreditavam.
Segundo os rapazes contaram assombrados e ofegantes, Mané Tiba parou de uma vez, assustando-os, depois correu e se agarrou com um pé de “espera aí”, um arbusto que forma uma touceira de espinhos. Não tem cão que se agarre com aquilo, mas o indígena se agarrou e começou a esturrar. Primeiro como onça e depois como sucuri. Abancou a rodar e a agarrar tudo que era de mato fazendo um redemoinho, levantando folhas secas e poeira. O pior de tudo mesmo foi a fumaça e o cheiro ruim. Os bichos que tinha por perto, como pássaros, macacos, nambus, carneiros, porcos e bodes do campo próximo, saíram em desabalada carreira se perdendo na mata. Um dos rapazes ainda olhou para trás e viu o bicho. Do jeito que viu descreveu.
_ Pai, ele tinha os pés de bezerro, as mãos de macaco e a cabeça parecia de uma besouro rola-bosta com os dois chifres na cabeça, a barriga tinha as pintas da paca; o gogó dele era de capelão, a língua de cobra e o nariz de um tamanduá-bandeira.
O pai arregalou os olhos duvidando da conversa dos dois. Esse Mané Tiba com medo assustou eles, pensou, mas, também, não era de duvidar dos filhos, desde pequenos honestos e trabalhadores. Era fato corrente que eles, alguns deles, indígenas, também se transformavam em Mapinguaris. Poderia ser isso.
_ Bom, a noite está chegando, amanhã vamos ao lugar em que Mané Tiba virou esse bicho que vocês estão falando.
Anos antes, o Joaquim migrou para a cidade. Fizemos uma grande amizade. Ele me levava para casa dos seus pais, onde passei dias maravilhosos caçando, pescando, andando na mata, conhecendo rios, lagos e igarapés… e ouvindo histórias e histórias. Nessa mesma noite chegamos de barco na casa de seu Francisco que nos contou o assombroso acontecido.
Na manhã seguinte, depois de quebrar o jejum, fomos juntos ver o lugar onde o chefe Mané Tiba tinha metamorfoseado nesse inseto gigante. Vimos a touceira de espera aí, os arbustos em volta todos arrancados, o chão escavado e as patas de boi. O lugar estava meio esfolado como se dois touros tivessem brigado. Investigamos cada detalhe, os jovens juravam de pé junto que tudo era verdade.
Noite seguinte nós fomos fachear pacas na beira do rio porque a noite era sem lua e os bichos vem beber água protegidos pela escuridão. O Joaquim quebrou o silêncio do rio e das matas.
_ Você viu, a conversa dos meninos sobre o Mané Tiba ter virado bicho?
_ Pois é, esquisito né?!
_ Acho que o Tiba deu um susto neles porque também estava com medo. Pode ter sido isso, porém, não descarto nada nesse lugar aqui cheio de ministério. Nasci e me criei aqui e já vi muita coisa estranha nessa floresta. As vezes, o que a gente pensa que é não é, e o que não é, é que é.
_ Pode ser, pode ser, meu amigo!
Anos mais tarde conheci o chefe Mané Tiba morando em um tapiri de palha, sem paredes, no bairro Sumaúma, periferia de Brasiléia, para onde desceu depois de ter acampado na boca do igarapé Noaya e virado bicho. Algumas mulheres e crianças com ele. Deitado em uma rede, parecia meio adoentado. Na ocasião o Joaquim estava comigo.
_ Aquele ali, deitado na rede é o chefe Mané Tiba, o que virou bicho na frente dos meus irmãos na trilha do São Luís, recordou o Joaquim.
Vi apenas um ser humano cansado, abatido e destituído de sua glória do passado quando corria nas matas, brincava com a família nas praias do rio Acre, bem antes da nossa chegada nessas terras. Soube depois que passou por Rio Branco e foi para Sena Madureira onde acampou na beira do rio Yaco. Morreu como mendigo. Seu corpo ficou, mas seu espírito deve ter voado como um pássaro para o céu de seus antepassados onde descansam.
Essa é a história do chefe guerreiro Mané Tiba, o indigena que virou bicho nas terras do seringal Sacado.