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Onça gigante devora jovem na estrada de seringa

Por
Astério Moreira

“Eu mesma vi a cabeça dela quando cheguei no seringal São Vicente”. (Amélia Farah)


_ Que onça que coisa nenhuma. Deixe de ser preguiçoso, menino! Você tá com preguiça de cortar seringa, tem que trabalhar meu filho, deixe de invenção. Amanhã cedinho da madrugada você sai pro corte!


_ Mas pai, tem uma onça me perseguindo, ela mija no caminho por onde passo, tira lasca de pau e risca as árvores com as unhas, cava o chão e faz o maior salseiro no caminho. Pai, ela tá me pastorando pra me pegar a traição. Tá me perseguindo e quer me matar! Me escute, meu pai! É uma onça muito grande pelo rastro que vejo no chão.


_ Que nada filho, leve a espingarda, vá cortar seringa, se ela aparecer passe fogo!


Muito obediente, como era antigamente, o filho pegou a espingarda, cartuchos, peixeira de bainha, poronga na cabeça, faca de seringa e a coragem. Partiu cedo da madrugada para o corte… para nunca mais voltar.


À época juntaram um bando de homens da redondeza, todos armados e alguns cachorros para ir atrás do menino que não voltou do mato. O que encontraram na estrada de seringa os marcou para sempre. As vidas dos que presenciaram a cena nunca mais foram as mesmas. A história se espalhou conforme relatam os mais antigos que sobreviveram ao tempo em que o seringal São Vicente, do Alexandre Cury Farah, no rio Acre, florescia.


Se a vida nos barracões, onde moravam os patrões seringalistas e suas famílias era difícil, árdua e penosa, nas colocações a situação era muito pior. Os seringueiros enfrentaram toda sorte de perigos e males:


Solidão, tristeza, saudade da terra distante, dos pais que ficaram para trás. Também havia cobras, jacarés, onças, gatos maracajás, gogós de sola, impaludismo, infecções, doenças e até os que se perdiam na floresta para nunca mais voltar. Além das “assombrações”, das “coisas estranhas”, do sobrenatural que se via e ouvia na mata: vozes, assobios, lamentos, gemidos, gritos, luzes ao longe e fogueiras acesas sem uma alma viva por perto. A mata tem seus mistérios, seus segredos. Todo seringueiro tem algum enigma da mata para contar.


As colocações eram distantes e isoladas umas das outras. A comunicação se dava por tiros de espingarda, principalmente quando havia perigo, pessoas doentes, quando nasciam crianças ou convocação para rezas.


Naqueles dias passados o meio transporte era fluvial feito por lanchas, batelões, gaiolas e navios que vinham de Manaus e de Belém abastecendo as cidades e barracões pelos rios Solimões, Negro e afluentes como Purus e rio Acre. As colocações forneciam a riqueza extraída da floresta.


Essa história é verdadeira e se passou no Seringal São Vicente, colocação Botafogo, no ano de 1950, Rio Acre, Bolívia, localizado entre os municípios de Brasília (hoje Brasiléia) e antiga Vila Paraguassu (hoje Assis Brasil) no extremo oeste, na divisa com a Bolívia e o Peru, de onde a floresta Amazônica se estende até ao sopé da cordilheira dos Andes.


O seringal São Vicente pertencia ao senhor Alexandre Cury Farah, imigrante árabe, que participou da Guerra do Pacífico quando o Chile invadiu territórios da Bolívia e do Peru, tomando a região de Antofagasta, isolando a Bolívia do oceano. Alexandre Farah era um guerreiro. Boa parte das terras que possuía foram concessões do governo boliviano como prêmios de guerra.


A colocação Botafogo, onde vivia o seringueiro José Meireles e sua família, ficava no centro, distante da beira do rio. Só viam gente quando vinham no barracão ou quando os comboieiros estalando chicotes ao longe chegavam com tropas de burros para levar as pelas de borracha, couros de bichos e castanha. Havia tropa de mais de 300 burros cortando varador de inverno a verão, no sol ou na chuva escoando produtos das colocações para a beira do rio, onde eram embarcados. Vivia-se ainda a era do ouro branco alimentando a riqueza dos seringalistas do Acre, Manaus e do Pará.


Cara a cara com a onça gigante, o cartucho resfriado não detonou

Aconteceu assim…


Na madrugada de um dia de verão de 1950 o filho do seringueiro José Meireles, beirando os 16 anos, saiu para cortar seringa depois de ter alertado o pai por diversas vezes que uma onça muito grande o perseguia. O pai achou que o filho estava com preguiça, o jovem foi e não voltou mais para casa. Temendo pelo pior, Zé Meireles juntou alguns homens armados e cachorros, inclusive gente vinda do barracão, e foi atrás do filho na estrada de seringa.


A primeira coisa que avistaram foi a espingarda caída no chão. Mas o corpo, onde poderia estar? Ninguém some assim do nada? Ao examinar a espingarda um dos mateiros que acompanhava a expedição concluiu que o jovem se deparou com a onça cara a cara, sacou do ombro a espingarda e apertou o gatilho duas ou três vezes, mas a espoleta resfriada não disparou o cartucho. Bateu catolé, como se dizia antigamente. A onça veio pra cima, ele ainda sacou da peixeira, mas ela era grande, o derrubou e o matou a dentadas. Para tristeza de todos, os cachorros localizaram o corpo do menino. A onça o arrastou uns trinta metros para dentro de uma restinga de mato, rasgou o peito e comeu as vísceras, inclusive o fígado, baço, pulmões e o coração. O seringueiro José Meireles jurou vingança sobre os restos mortais do filho ali no meio do mato. Voltaram com o corpo para a colocação Bota Botafogo onde foi sepultado.


Cumprido o luto, Meireles juntou os homens, mais cachorros e partiram pra mata em busca da fera que tirou a vida de seu jovem filho. Armados, até os dentes chegaram no mesmo lugar em que ela havia escondido o corpo do menino. A onça mata, come, esconde a caça e depois volta para comer de novo.


Neste lugar soltaram os cachorros famintos (quando se vai caçar os cachorros passam dois dias sem comer); ficam mais furiosos e sanguinários. Cães, papagaios, araras, jacus, macacos eram bichos de estimação nas colocações dos seringueiros. Os cães eram mais úteis, caçavam às vezes sozinhos. Às vezes, também, a vida de um seringueiro estava nas mãos do seu melhor amigo, o cão que o alertava do perigo, principalmente de cobras.


Um dos cachorros deu o primeiro sinal uivando, ecoando longe na mata no que foi seguido pela matilha. Só se ouvia cachorro latindo para todos os lados. Um dos homens gritou:


_ É ela, é a onça, voltou para comer o que sobrou do menino e os cachorros pegaram o rastro, vamos correr pessoal, chegou a hora de matar a desgraçada! Um deles estumou (atiçou) os cães que ficaram ainda mais furiosos. A hora da vingança tinha chegado…


Quem já morou na floresta sabe que a carreira da onça é curta. No primeiro pau que tiver ela se trepa. Diferente do veado que tem carreira longa no rumo do rio ou igarapé para despistar os cães e caçadores. A bicha subiu numa árvore não muito alto. Antes, porém, ela matou dois cachorros de tapas, rasgando-os com as unhas e jogando eles longe que uivaram de dor até morrer. Quando os homens avistaram a bicha trepada ficaram assombrados tal o tamanho da fera. A maior já vista até em tão naquelas redondezas. Foi dado a José Meireles o direito de dar o primeiro tiro, no que foi seguido pelos outros. A onça despencou embaixo no chão, os cachorros voaram em cima, mas foram contidos. Estava morta. Com muito esforço levaram a bicha até o barracão, onde foi tirado o couro. A cabeça ficou como troféu no barracão com seu Alexandre Farah e seus descendentes até se perder na poeira do tempo.


Onça também ataca Meireles em outra colocação

Depois do acontecido, o seringueiro José Meireles mudou de colocação. Saiu da Bota Fogo para uma mais próxima do barracão. Não poderia viver no mesmo lugar com a lembrança dolorosa da morte do filho nas garras da pintada naquelas matas. Porém, no mesmo ano, José Meireles também foi atacado por uma onça na estrada de seringa em que cortava, mas essa ele lutou bravamente com ela e a matou. A primeira pintada deixou marcas no seu coração, a segunda no seu corpo.


Parentes e testemunhas na casa dos 80 anos que vivem em Brasiléia e Cobija (BO) descrevem o acontecido com Zé Meireles e seu falecido filho. Foram bons seringueiros. Conforme relata a senhora Amélia Farah, casada com Alexandre Farah (Meleco), filho de Miguel e neto do velho Alexandre. A filha do seringueiro Meireles e irmã do jovem, Darcy, ainda está viva na fronteira. Dona Amélia chegou no São Vicente em 1960 e viu a cabeça da onça exibida como troféu. A maior onça macho já vista naquelas paragens.


Se o leão é rei na África e na Ásia, na Amazônia quem dá as cartas são as onças, felinos aparentados dos leões. Foram muitos os seringueiros que morreram jovens embrenhados nas matas. Outros, sobreviveram a uma era que jamais poderá ser esquecida. É a nossa origem, a nossa história. São eles nossos verdadeiros heróis. Conhecedores de um modo de vida que se vai perdendo no tempo em que os homens enfrentavam as onças.


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Astério Moreira

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