Rayane Brito Pereira, 20, assiste há dois anos ao drama do filho Vinícius. Ele não fala, não anda, não consegue engolir e só respira com ajuda de um ventilador mecânico. A solução já existe: o Zolgensma, um remédio de R$ 6,4 milhões que pode salvar a vida de Vinícius, mas que também pode colocar na UTI o orçamento de cidades inteiras, comprometendo os investimentos em programas de saúde com potencial para salvar milhares de vidas.
Aos quatro meses, Vinícius foi diagnosticado com AME (Atrofia Muscular Espinhal), uma doença genética rara que atrofia os músculos de aproximadamente 8.000 brasileiros e que pode levar a criança à morte precoce.
O medicamento só pode ser aplicado até os 2 anos de vida —idade atual do menino— ou enquanto ele pesar até 20 quilos. O garoto pesa hoje 6,5 quilos. Sem dinheiro para importar o Zolgensma, apelidado de o “remédio mais caro do mundo”, Rayane correu para a Justiça com a esperança de que ela obrigasse o estado do Paraná, onde mora, a bancar o medicamento. Rayane perdeu o processo em duas instâncias e agora aguarda o STF (Supremo Tribunal Federal), que ainda não marcou data para o julgamento.
A gente entrou com processo quando ele tinha seis meses. Aí foi negado no tribunal de Campo Mourão [PR], depois pela Justiça em Curitiba. Agora está em Brasília faz uns dois meses
Já Sophia, filha de Debora Rezende, 36, recebeu o Zolgensma em agosto do ano passado, quando a criança tinha 1 ano e 2 meses. “Demorou 90 dias para sair a liminar [decisão provisória da Justiça]”, conta Debora, moradora de São Bernardo do Campo (Grande São Paulo).
Antes de receber o medicamento, a bebê não conseguia se sentar, praticamente não movimentava as pernas e, aos seis meses, começou a engasgar na amamentação. Depois do Zolgensma, Sophia deita sozinha, fica em pé e arrisca alguns passos se apoiando em uma barra.
“A Sophia sempre gostou de morder o dedo do pé, e era eu que levantava o pezinho”, conta a mãe. “Menos de uma semana depois de tomar o remédio e ela já levava sozinha o pé até a boca!”
“[Os R$ 6,4 milhões que custam o remédio] valem uma vida, mas a pergunta é outra: quantas vidas perdemos para salvar uma única criança com doença rara?”, questiona Luis Correia, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e estudioso do tema.
Correia diz que ninguém é contrário a tratamento por mais caro que seja, mas não basta ser a favor: é preciso ter recursos, e nenhum sistema de saúde tem dinheiro infinito. “É um custo não planejado que recai sobre cidades, estados e União.”
Eu defendo que o paradigma da justiça distributiva esteja presente nesta complexa discussão com a sociedade
Para Marcelo Duzzioni, professor de farmácia da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), os recursos gastos com medicamentos de alto custos poderiam ser dedicados a pesquisas, por exemplo.
“Quanto que a gente poderia gastar em doenças endêmicas ou pesquisas?”, questiona. “Para pesquisas sobre a covid-19, você precisa de R$ 50 milhões, e olha a quantidade de pessoas que você vai atingir”, diz Duzzioni.
Às vezes, o fornecimento de um remédio de alto custo pode comprometer o orçamento de uma cidade inteira. É o que quase aconteceu em 2020 com Santa Isabel, cidade de 58 mil habitantes na Grande São Paulo. Naquele ano, uma garota de 16 anos com uma doença renal crônica ganhou na Justiça o direito de receber da prefeitura um medicamento que custava R$ 1 milhão ao ano.
“Todo o orçamento da prefeitura para a área da saúde era de R$ 900 mil”, diz o advogado Luan Aparecido de Oliveira, que defendeu Santa Isabel na época. “Fomos ao STF, que dividiu os custos entre o governo federal e estadual”, diz Oliveira, que hoje é secretário jurídico de Igaratá, cidade próxima.
Desde que o Zolgensma foi registrado nos Estados Unidos, em 2019, o Ministério da Saúde do Brasil diz já ter desembolsado R$ 765,4 milhões para que 78 pacientes o recebessem, o que dá uma média de R$ 9,8 milhões para cada um. Todos conseguiram o direito na Justiça.
Esse valor equivale, por exemplo, a quase 4% de tudo o que o SUS (Sistema Único de Saúde) desembolsou com medicamentos em 2020 (R$ 20 bilhões), segundo o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Para se ter uma ideia, o gasto com remédios fornecidos pela Farmácia Popular a 16 milhões de pacientes com diabetes no Brasil chega a R$ 1,5 bilhão por ano, ou cerca de R$ 94 por paciente, segundo estudo da Annals of Global Health.
Em 2021, o governo federal diz ter gastado R$ 1,6 bilhão com drogas para tratar 694 mil pacientes com HIV no Brasil, ou R$ 2.300 por ano para cada um deles.
Criado em meados da última década pela startup americana de biotecnolgia AveXis, o Zolgensma só foi aprovado nos Estados Unidos em maio de 2019, meses depois de a AveXis ter sido comprada pela farmacêutica suíça Novartis.
No Brasil, a única terapia gênica disponível para o tratamento da AME foi liberada pela Anvisa em agosto de 2020. Logo em seguida, muitos médicos passaram a receitar o medicamento, que na época custava R$ 11 milhões no país. O valor era em dólar (cerca de US$ 2 milhões) e variava conforme o câmbio.
Diante do rombo nas contas públicas, o governo tratou de negociar com a Novartis a redução no preço da droga com a promessa de incorporá-la ao SUS, medida que também derrubaria a judicialização de casos.
O acordo da farmacêutica com a CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) —responsável por regular os preços de remédios no Brasil— finalmente foi assinado em março deste ano, e desde então o remédio não pode custar mais de R$ 6,4 milhões.
“Agora a Novartis precisa submeter um dossiê à Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias], que avalia se o remédio será incorporado ao SUS”, diz Diovana Loriato, diretora do Iname (Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal).
Questionada pelo UOL sobre quando pretende entregar o doissê à Conitec, a farmacêutica respondeu que “a empresa está em fase de finalização e em breve deve submeter o dossiê ao órgão”.
“Se a Conitec aprovar a incorporação, serão mais 180 dias para descrever o protocolo, os pormenores, como os critérios de inclusão ao SUS”, explica Diovana.
Em dezembro de 2020, o UOL conversou com Bruna de Fátima da Silva, 28, mãe do João Guilherme, que então com 1 ano e 7 meses aguardava por uma decisão judicial para receber o remédio mais caro do mundo.
“O João faleceu em fevereiro agora, com 2 anos e 9 meses, esperando o Zolgensma”, lamentou Bruna.
Ficamos quase 2 anos tentando, mas o STF negou em agosto do ano passado alegando falta de dinheiro. Quando a advogada me avisou, vi que eles estavam condenando meu filho à morte.
A mesma reportagem também contou a história da Helena, filha de Neyce Fernanda Pestana Ferreira, 25, que viu seu “mundo desabar” com o diagnóstico da filha aos seis meses de vida. “Me desesperei, não conseguia acreditar.”
O jeito foi fazer como as outras mães e recorrer à Justiça e a campanhas de arrecadação. A boa notícia chegou em uma liminar concedida em Goiás em 14 de dezembro de 2020: Helena teria o direito de receber o Zolgensma do governo federal.
“Ela tomou o remédio no dia 23 de março de 2021, e depois daquele dia é como se ela tivesse nascido de novo”, diz Neyce. “A cada dia me surpreendo. Helena está conversando demais. Ela agora segura a cabecinha, controla a coluna cervical. Antes não tinha força nas mãos e hoje consegue segurar e levantar as coisas. As perninhas ficam balançando para lá e para cá.”
O Zolgensma foi uma dose de vida que a minha filha tomou. Cheguei a achar que ia perdê-la a qualquer momento, mas minha filha venceu. Ela é um milagre que hoje está aqui do meu lado.
Quem também passou pela via-crúcis do diagnóstico à luta pelo remédio foi o menino Arthur e a mãe, Alessandra Ferreira Santos, 28. O UOL acompanhou a saga da família ao longo de 2020. Faltando dois meses para completar 2 anos de idade, o garoto finalmente conseguiu o direito ao medicamento, mas precisou voltar à Justiça porque a União não depositou o valor na data determinada pelo juiz.
Depois da espera, o garoto finalmente recebeu a droga em outubro de 2020, mas não resistiu e morreu em janeiro do ano passado. A família isenta o remédio, mas prefere não comentar sobre a morte porque não superou a perda e porque o laudo com as razões do óbito “foi inconclusivo”.
O modelo brasileiro de incorporação de medicamentos de alto custo ao SUS se inspirou no sistema desenvolvido nos anos 1990 pela saúde pública do Reino Unido (NHS).
Lá, existe o Nice (Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidado), órgão criado em 1999 que reúne equipes técnicas multidisciplinares para avaliar as evidências científicas de remédios de alto custo para ter certeza se os ganhos em saúde para a população em geral justificariam a inclusão da droga no sistema público.
Por aqui, um órgão parecido só surgiu em 2011, com a fundação da Conitec, mas as semelhanças terminam aí.
Professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), Fernando Aith afirma que as decisões do Nice são colegiadas, ao contrário do Conitec, que é apenas um órgão consultivo.
“No Brasil, quem delibera continua sendo, monocraticamente, a autoridade política, no caso o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde”. Hoje quem comanda a pasta é Sandra de Castro Barros.
Além disso, o Nice criou um índice, um teto de custo-benefício para decidir se incorpora um medicamento ao sistema britânico.
“Eles têm um cálculo que avalia os benefícios que o novo medicamento suspostamente traz em relação ao custo de remédios já na praça. Se esse número for abaixo do teto, o remédio é incorporado, se não, não é incorporado”, explica. “Isso não existe no Brasil.”
O NHS anunciou em março do ano passado um acordo com a Norvatis que garantiu um desconto (valor não revelado) para incorporar o Zolgensma ao sistema público britânico.
Segundo o professor, o Nice tem legitimidade no Reino Unido porque é um órgão eminentemente técnico. “Não há ingerência política sobre o processo de análise. Se o Nice decidiu que não vai incorporar, nenhum juiz vai determinar que a Inglaterra dê o medicamento, ao contrário do Brasil”, onde “o juiz acaba desconsiderando as decisões da Conitec”.
Ao UOL, a Conitec disse apenas que a lei que o criou e o decreto que o regulamenta “preconizam a participação social em todas as demandas avaliadas pela comissão”.
Promotor de Direitos Humanos de São Paulo, Reynaldo Mapelli Júnior tratou do tema em sua tese de doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Para ele, o SUS não deveria ofertar medicamentos “ainda não aprovados pela Conitec”, como é o caso do Zolgensma.
“Medicamento de alto custo precisa ser aprovado pela Anvisa e depois pelo Conitec para que seja incluído em políticas públicas”, defende.
Ele concorda que nem sempre a prescrição médica e a decisão judicial respeitam esse critério. “Em geral, quando se diz que o remédio é fundamental, não é: existem alternativas terapêuticas para aquele tratamento.”
Quando o medicamento é novo e caro demais, a indústria tem muito interesse em vender. É necessário levar em conta a comprovação de efetividade e não a prescrição por um médico que participa de congresso da indústria farmacêutica.
Reynaldo Mapelli Júnior, promotor de Justiça
Por que só para alguns?
Nossos dias são difíceis. A gente mora de aluguel, estou desempregada e meu marido não ganha o suficiente para pagar os gastos com o Vinícius. A prefeitura fornece o leite, os remédios, as consultas com fonoaudiólogo, duas fisioterapeutas, além de emprestar os equipamentos, como o respirador.
O restante dos gastos, uns R$ 5.000 por mês, a gente consegue com voluntários, que gostam muito do Vinícius. Eles fazem vaquinha, rifa, ajudam como podem.
Meu filho precisa ser aspirado três vezes ao dia. Como ele não consegue engolir, a gente coloca um caninho para sugar a secreção que acumula no nariz e na garganta e dificulta a respiração.
Também ajudo como posso. Aspiro também, faço massagem, alongo o corpinho dele. Meu marido não tem coragem, tem dó.
Meu sonho é que o meu filho consiga o Zolgensma e um dia saia do respirador e consiga engolir novamente. Não sei se vai ser possível vê-lo andar, mas que pelo menos tenha uma qualidade de vida um pouco melhor.
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