Maria, que presenciou a cena aos 12 anos de idade, contou anos mais tarde que João, seu irmão, ligeiro que nem um gato maracajá, pulou em cima do brabo, derrubou ele e já foi empurrando a língua de peba por baixo do pano da costela atingindo o coração ali mesmo no meio do varadouro. Sangrou ele como quem sangra um bicho. A peixeira entrou até o cabo. João deu mais uma furada no bucho, limpou o sangue da peixeira no peito dele e, virando-se para ela, disse: “Vamos pra casa minha irmã Maria, chega de sofrer”.
Maria nasceu em 1910, no começo de um século de profundas transformações e muitas guerras, em um seringal às margens do rio Purus, na região de Lábrea, Amazonas, numa casinha simples feita de barrotes, caibros, coberta de palha de jarina. Por esse tempo quase não havia mulheres entre os homens migrados do Nordeste, principalmente do Ceará.
A casa era como um tapiri na clareira da mata de onde se avistava o estirão do rio até se perder na curva de cima. Ficava no alto de um barranco. Se ouvia o som dos bichos durante a noite de tão perto da mata que era. No terreiro, algumas fruteiras, cidreira, capim santo, pimenta e um pé de coité de fazer cuias como as utilizadas para tomar tacacá.
Os pais de Maria tinham vindo de Limoeiro do Norte, no Ceará. Os irmãos nasceram lá. Ela veio na barriga da mãe que deu à luz nesse lugar. Viviam da extração de látex, agricultura de subsistência rudimentar, caça e pesca, além da coleta de castanha.
Aos dez anos de idade Maria já era órfã. O pai morreu de maleita e a mãe de uma ferroada de pico jaca. Foi criada pelos irmãos, principalmente o João, o mais velho. Homem trabalhador e valente. João assumiu o papel de chefe da família. Na selva só sobrevivem os fortes. Os que a própria natureza seleciona. Maria era franzina, baixinha, mas forte.
O assoalho da casinha em que moravam era de paxiúba, principalmente a pequena cozinha conhecida como rabo de jacu. Fogão e forno de barro. A lenha ficava armazenada embaixo, juntamente com alguns pedaços de sernambi e fachos utilizados à noite quando necessário ir a privada, o pau da gata.
Um pequeno armário de tábuas brutas servia para guardar pratos de esmalte, latas com arroz, feijão, farinha puba, sal e banha de porco com pedaços de carne de caça pré-cozidos e alguns temperos. Acima do fogão de barro, carnes de veado, porquinho do mato, pacas e outros animais eram defumados em um fio de arame ou mesmo cipó de tiras de envira tecidos. Cachos de banana ficavam pendurados no rabo de jacu. Tudo cheirava a fumaça e a farinha de mandioca. Lamparinas e porongas eram utensílios básicos.
Pendurado em um dos caibros, uma casa de abelha jandaíra servia de ornamentação, bem perto do pote de barro onde um caneco repousava sobre uma tampa de madeira. A água potável era retirada de uma fonte com um bonito olho d’água que João tinha cavado no barranco que havia por trás da casa. Também tinha um pequeno galinheiro onde as galinhas produziam ovos. Ficavam protegidas dos predadores da noite, especialmente a mucura, a cobra papa-ovo e o tijuaçú.
No quarto de um vão só as paredes eram forradas de velhos jornais, revistas e calendários de papel trazidos pelas embarcações vindas do Recife, Belém e Manaus. Servia para impedir a entrada do vento frio nos dias de friagem. As madrugadas eram frias. As poucas roupas e alguns documentos como o registro de nascimento eram guardados em duas velhas maletas de papelão usadas pelos arigós.
Um rifle winchester, calibre 44, ficava pendurado em um prego ao lado da rede de João. Todos dormiam em redes, não havia camas. Uma tábua e um pequeno espelho quadrado pregados na parede servia de penteadeira. Além de João, Maria tinha mais dois irmãos. Pedro e Marfisa.
Aos nove anos, Maria escapou de morrer afogada no rio Purus, bem no porto da frente da casa. O rio estava de repiquete. Pulou da popa da ubá de guariúba (uma invenção dos índios) brincando com os irmãos. João conseguiu segurá-la pelos cabelos. Iria virar comida de piranambu, piranha ou jaú. Não foi dessa vez. História que ela contaria até o último dia de vida.
Maria amava o seu irmão João. Deus levou seus pais, mas deixou o João para cuidar deles no meio daquela imensa floresta cheia de bichos, doenças e perigos. João era um homem rude, duro, um sertanejo forte e muito trabalhador. Às vezes, perverso. Fazia o que tinha que ser feito. A mulher, para ele, não deveria nem aprender a ler. Foi feita para procriar, cuidar de filhos, da casa e ajudar no roçado. Esse era o seu mundo. Costumava dizer suspirando: “A gente sai do sertão, mas o sertão não sai de dentro da gente; dentro de mim tem um grande sertão”.
Aos 11 anos, Maria foi roubada…
Um dia, cedinho de manhã, João foi para o roçado colher arroz, levou Francisco e Marfisa. Maria ficou em casa fazendo a boia. Boia era a comida composta de arroz, feijão, farinha e carne de caça. Macaxeira, carne seca de veado com farinha e leite de castanha era a principal iguaria.
Ao voltar do roçado João estranhou não ver fumaça saindo da pequena chaminé que ele havia feito. Entrou correndo em casa chamando por Maria. Só o silêncio. Na pequena cozinha as coisas espalhadas pelo chão de paxiúba levaram João a concluir que ela, a Maria, fora roubada por um brabo. Brabo era o apelido dos migrantes que acabavam de chegar do Nordeste. Tinham que ser amansados na mata cortando seringa. João não contou conversa. Pegou o rifle 44, uma peixeira afiada e partiu em busca de Maria.
João mata de peixeira o cabra que roubou Maria
_ Meu irmão sempre foi bom de pegar rastro, contava Maria com orgulho. Ele foi atrás de mim, me achou, ele não me abandonou. Dizia suspirando com lágrimas nos olhos mesmo em idade avançada.
Depois de três dias de viagem João avistou no varadouro do centro o homem e Maria sendo puxada pelo braço. João gritou. Os dois pararam. Ao se aproximar ofegante, cheio de ira e cego de ódio, João observou o sangue escorrendo pelas pernas franzinas de Maria. Ele havia deflorado sua irmã e teria que pagar com a vida. Uma menina de apenas 12 anos, da primeira menstruação.
João puxou a peixeira e disse:
_ Olhe cabra ruim, não vou lhe matar de tiro não, vou lhe sangrar de peixeira para você nunca mais desonrar a irmã de um homem macho.
_ Eu quero ficar com ela, eu me caso com ela.
_ Ela só tem 12 anos de idade, cabra ruim. Maria não é para o seu bico não, cabra safado. Não é assim que se faz com uma família, você passou na minha casa e roubou ela. Um de nós vai ficar aqui hoje pra sempre…
Maria, que presenciou a cena, contou anos mais tarde que João, ligeiro que nem um gato maracajá, pulou em cima do homem, derrubou ele no chão e já foi empurrando a língua de peba por baixo do pano da costela atingindo o coração ali no meio do mato. A peixeira entrou até o cabo. Deu mais uma furada no bucho, limpou o sangue no peito dele e, virando-se, disse: “Vamos para casa minha irmã Maria, chega de sofrer”. Voltaram em silêncio.
O corpo ficou lá no meio do mato pros bichos comerem. Depois disso, migraram para a região de Xapuri, no rio Acre, onde viveram por muitos anos. Do morto ninguém deu fé, nem a justiça.
Maria jamais esqueceria essa cena por toda a sua vida. Um dia, antes de partir, aos 96 anos de idade, chamou um dos netos, já homem feito, e contou a história. O neto compreendeu a dor escondida no peito da avó. Ela precisava aliviar o peso de sua memória confessando esse fato. Maria herdou de João a coragem, a valentia e a força do trabalho.
Casou-se depois de um tempo com um seringueiro, um paraibano, a quem João se afeiçoara. Um sujeito trabalhador que cuidou dela por mais de 70 anos. Ele e Maria geraram filhos e filhas. Juntos enfrentaram doenças, perigos, onças, cobras e jagunços que queriam tomar suas colocações de seringa para transformá-las em pasto para criação de gado quando os sulistas chegaram. Maria fechou os olhos e descansou em paz na terra que seus pais escolheram para viver, amaram e foram sepultados assim como ela. Como ela mesma dizia: “Uma terra de bravos no tempo em que os homens roubavam mulheres”.
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