Antigamente o pequeno Albert tinha melancolia aos domingos, principalmente nos finais das tardes. Era uma tristeza danada. Um vazio só. Aquela sensação de que alguém morreu ou que ele iria morrer repentinamente. Sentia culpa. Às vezes, acontecia de ter a mesma sensação ao cair da tarde dos dias comuns. Sempre no ocaso. O sol se pondo e Albert morrendo junto com ele. Os últimos raios desaparecendo no horizonte e ele ficando com medo da noite que chegava. Foi bem no final da década de 60, comecinho da década de 70. O pequeno Albert fazia a passagem para a adolescência.
A primeira estrela que despontava no céu não era suficiente para tirá-lo da depressão. Ao contrário, sentia-se mais só ainda. Sentia medo da noite. Medo de Deus. Medo de morrer e ir para o inferno. Por que a culpa? Queria fazer tudo certo, pensar no bom, no puro, mas errava constantemente?
“E se eu tivesse cometido algum pecado que não lembrasse de pedir perdão, morresse e fosse parar no inferno, um lugar de sofrimento. Albert tinha medo de sofrer.
Pensamentos assim angustiavam a alma de Albert, que vivia com medo de demônios, bruxas e do bicho-papão. Foi o legado da idade média que nasceu com as igrejas. Quando criança Albert não conseguia discernir se Deus era bom ou não. Para ele, era um ser assustador que deixou o próprio filho morrer em uma cruz. Sua vida era um tormento apesar de aparentar ser uma criança normal. E era.
Albert não saberia dizer exatamente quando começou a ter medo da noite. Medo de Deus. Na infância era comum dormir cedo na cidadezinha em que morava com a família. A energia era ligada às 18 horas e encerrava às 21h. Não existia televisão, rádio local, telefone…só telégrafo. Sentia uma atração pela noite, mas tinha medo.
À época as cidades eram povoadas às margens dos rios. Não havia estradas interligando-as. Viviam em comunidades isoladas como ilhas, vilarejos, pequenas bolhas de gente encravados na floresta. Os seringais e as colônias também eram pouco povoados. A densidade demográfica é muito baixa. A vida parecia lenta e preguiçosa. Os dias eram longos, demoravam a passar. Das 12h às 14h a única rua que concentrava todo comércio da cidade fechava. Tudo, tudo mesmo parava. Hora da siesta, do descanso. Assim se fazia o mundo que cercava Albert. Casa, escola, igreja, bola, o rio…o rio era liberdade sonhada por ele.
Navios, lanchas e batelões iam e vinham singrando os rios. Às vezes, alguma família da cidade embarcava numa lancha e partia para a capital, até para o Rio de Janeiro, Manaus ou Belém. Ficava um vazio, uma tristeza naquele lugar. Um oco.
“As partidas, as viagens nos preparam para a morte”, pensava Albert. A grande e última viagem ao desconhecido. A casa dos que partiam nunca mais era a mesma. Cada família que ia embora, era como um pedaço arrancado do coração da cidade. Outras famílias chegavam vindas dos seringais ou funcionários do governo e ocupavam o lugar. Começava tudo de novo como um ciclo. Uns iam, outros vinham. Sempre pelo rio. Albert amava o rio.
Passava horas na margem vendo as águas correrem para nunca mais vê-las novamente. “A vida é como um rio. Avós, pais, irmãos, amigos…vão passar um dia. Irão embora para sempre como os balseiros que descem nos repiquetes de inverno”, passava horas pensando essas coisas, apesar da pouca idade. Nos dias de verão, dias de sol Albert brincava no rio, nas pequenas praias. Era feliz com amigos, primos e irmãos.
Poderia se dizer que Albert era muito medroso, introspectivo e melancólico. A consciência precoce da morte era como uma doença. Passava muitas madrugadas acordado debaixo de uma coberta suando com medo de demônios ou de alguém que morreu e viesse buscá-lo. Tinha pavor de mortos. Por volta de 1968 começou a ter medo dos comunistas da Rússia. Eles vinham buscar crianças para matar, tirar os miolos, fazer unguento e ter o poder de ler a mente das pessoas. Um terror imaginar tudo isso. Ele soube dessas coisas através dos colegas de escola. A propaganda ideológica chegava nos lugares mais remotos.
O medo aumentou quando soube que na área em que o seu pai havia construído a casa era um velho cemitério abandonado pelos índios que habitaram a região, depois dos combatentes da Revolução. Uma lenda urbana. O que o aterrorizava mais ainda era o fato que seus pais quase nunca fechavam as janelas da casa à noite, principalmente da cozinha e da sala de jantar. Eram enormes! janelas corrediças. O sanitário era colado na casa, mas o acesso se dava pela sala e não pelos quartos. Para o pequeno Albert, levantar a noite para ir ao banheiro com uma vela era um tormento.
Na casa de Albert viviam além de seus pais, suas quatro irmãs, três irmãos, uma senhora chamada Esther a quem chamavam de vó, e duas domésticas que vieram do seringal para trabalhar e estudar. Era muito comum meninas virem das colônias ou dos seringais morarem na cidade, principalmente porque os pais não queriam que se casassem muito cedo.
Albert dormia com seus irmãos em um quartinho aconchegante agregado ao quarto dos pais. Acordava com medo sem nem saber de quê e, sem que os pais percebessem, metia-se entre eles. A mãe, a dona Maria, começou a ficar incomodada e o mandava voltar para a cama. Ele ia e voltava na ponta dos pés deitando-se ao lado deles sem tocá-los para que não acordassem. A mãe percebia e deixava. Sentia-se seguro, o medo passava. Era uma sensação de segurança indescritível. Dormia profundamente. Até o medo de Deus passava. Os olhos de Deus estavam em todos os lugares. Até no banheiro.
Certa noite Albert acordou à noite com uma dor de barriga terrível. Naquele tempo era comum as famílias usarem um penico debaixo da cama para as crianças urinar. Mas a ordem da mãe para todos os filhos era:
“Se for bosta não pode ser no penico, tem que ir ao banheiro. Acende uma vela e vai. Aqui não tem onça, bicho-papão nem defunto. Tem que ir”. Albert fez no penico com medo de ir ao banheiro. Do quarto a mãe sentiu e sentenciou:
“Albert, pega esse penico e vai jogar no vaso sanitário e se lave. Jogue um balde de água e venha para a cama”.
O pequeno Albert ficou apavorado com o fato de ter que sair do quarto naquela noite escura como betume. Breu era pouco para tanta escuridão. Não havia lua e o céu estava encoberto de nuvens carregadas de chuva. O vento que soprava anunciava uma noite de chuva pesada de janeiro. Uma tempestade. Ouvia os trovões se aproximando. Noites assim eram melancólicas com o barulho da chuva no zinco. Dava uma tristeza danada, um vazio no peito, vontade de chorar. Uma tristeza de viver sabendo que se vai morrer. Albert não se conformava com esse fato. Por que morremos? Passava horas pensando enquanto a chuva desabava sobre a cidade escura. As pessoas dormem, dormem e não se dão conta, refletia abstraído.
Como ele poderia sair do quarto naquela escuridão toda? O mais grave é que tinha cometido um pecado mortal: havia mentido para a mãe. Disse que não fora ele que havia furtado a lata de leite condensado (uma novidade deliciosa) e comido com farinha escondido embaixo da mesa. As meninas acharam a lata. A prova do crime. Ninguém sabia quem era o criminoso. A dor de barriga era o começo do castigo e tinha escutado dos coleguinhas na igreja que menino que mente é visitado de noite pelos demônios.
“Se eu for lá fora, o bicho vai me pegar. E agora? Se eu contar para minha mãe que roubei a lata de leite ela é capaz de me dar uma surra agora mesmo”.
“Vá logo levar esse penico lá fora ou vou aí conversar com você, Albert”, sentenciou a mãe pela última vez”.
Naquela hora Albert teve mais medo de peia do que do cão. Tinha culpa, merecia ser punido. Tremendo de medo resolveu ir. Pegou a vela acesa presa a um pires branco de porcelana e deu os primeiros passos. A vela na mão esquerda e o penico na direita porque era mais pesado. Abriu a porta do quarto e caminhou mais um pouco. Passou pela sala de visitas aproximando-se da grande sala de jantar com suas pesadas janelas abertas. Forçou a vista para enxergar alguma coisa lá fora. Não dava. A escuridão era total.
O coração de Albert disparou de medo, suava, estava ofegante. O pecado da mentira não saía da mente. E se um demônio viesse pegá-lo? Quem sabe um comunista? Os outros meninos haviam dito que os comunistas já haviam levado outras crianças de cidades próximas. Até no seringal já tinha sumido menino. Albert deu mais alguns passos. Foi um desastre. Uma brisa soprou na vela que apagou. Por ironia do destino, uma gata no cio soltou um miado que era o rugido do próprio demônio ecoando nos ouvidos do pequeno Albert. Foi à conta. Jogou a vela e o penico para cima e saiu correndo aterrorizado em direção ao quarto dos pais gritando. Acordou a casa toda. O queixo batia, parecia um queixada.
“Que foi isso menino?”, indagou assustado seu Albert pai, com o que poderia estar acontecendo com o Albert filho, naquela escuridão toda. Seu instinto foi socorrer o filho.
Albert filho tinha passado pela sala, pelo quarto dos irmãos, pulado por cima da cama dos pais na velocidade da luz, estava escorado na parede do outro lado chorando muito. Tremia dos pés à cabeça. Chorava, gagueja e falava com cara de pavor:
“Mamãe foi um bicho-papão que quis me pegar. Papai foi um bicho bem grande. Ele deu um berro e ia me morder…queria me levar embora! Mamãe fui eu que roubei a lata de leite e comi com farinha. Eu menti para a senhora. Perdoe-me mamãe eu nunca mais vou mentir para a senhora (Albert confessou o pecado na hora).
“Que bicho-papão coisa nenhuma menino. Você deve ter feito a maior sujeira com esse penico lá na sala. Vai ter que limpar ou vai levar uma surra”.
“Calma Nega, ele ficou com medo dos gatos lá fora que não deixam ninguém dormir”. O senhor Albert saiu em socorro do filho para que não levasse uma sova ali, naquela hora. Era um bom sujeito. Advogado dos filhos nas causas impossíveis.
“Tudo bem, Albert filho, mas pode ir limpar a sujeira que você fez lá na sala. Não quero nem ver. Chame as meninas para ajudar. Amanhã pela manhã vou ter uma conversa com você sobre a lata de leite”.
Albert crescia, mas o medo não diminuía. Ao contrário, aumentava. Além do medo de Deus, do cão, do inferno, dos mortos e dos comunistas surgiram novos medos. Medo de ser comido por uma onça quando ia para a casa dos avós no seringal. Os pais de dona Maria eram seringueiros. Gente simples, feliz e muito trabalhadora. Com o passar do tempo Albert passou a ter medo de que os pais morressem. Irmãos e amigos também. Ficava angustiado com essas ideias que assolavam a sua mente infantil. Com a construção da estrada da capital para sua pequena cidade do interior passou a ter medo de ladrões. Passar na frente de cemitério nem em sonho, nem de dia nem de noite. Às vezes, olhava com o rabo do olho quando era obrigado a passar na frente do cemitério. Via os túmulos e as cruzes. “Por que as cruzes”? Não entendia.
Algo que o atormentava quando a noite ia chegando era a de que a sua casa estava em cima do velho cemitério – era mentira. Não se sabe se por brincadeira ou não, um senhor, o “seu Elí”, que ajudava a cuidar da horta da casa de Albert disse que havia encontrado uma caveira humana quando fazia uma das leiras de alface. Ele acreditou sem nunca ter visto ou perguntado pela tal cabeça. Essas conversas alimentavam a mente fértil do pequeno.
Certa noite, com medo de ir para o quarto sozinho, Albert ficou na sala de jantar escutando as conversas dos adultos. Para refrescar o calor de dezembro e janeiro o senhor Albert pai atava algumas redes no salão das janelas abertas. Cansado de um dia de estrepolias e traquinagens, ele adormeceu. Acordou no escuro e se deu conta que não estava na segurança do quarto com os irmãos e sim na rede, na sala com todas as janelas abertas. Todos foram dormir e ele ficou ali esquecido na rede. Instintivamente puxou o lençol e cobriu a cabeça. O coração disparou, começou a suar e a lembrar dos pecados que tinha praticado. Perdeu a conta: falou palavrão, mentiu para a professora, brigou na escola, não fez o dever…estava condenado ao fogo do inferno. Todos foram dormir nos quartos e ele ficou sozinho na sala de uma casa construída em cima de um cemitério.
Daquela noite não escaparia. Um demônio viria buscá-lo. Pensou em levantar-se da rede, mas a porta do quarto poderia estar fechada por dentro. Não arriscaria a ir e ter que voltar. Na rede era mais seguro. Estava com os sentidos tão aguçados que poderia ouvir uma barata ou uma aranha passar por baixo da rede. Naquela noite havia lua. Podia perceber mesmo estando todo coberto. Via o clarão que entrava pela janela. Não era o suficiente para aplacar o medo e a culpa dos pecados e o medo dos demônios que atormentavam a sua mente de quase adolescente.
“A rede! Meu Deus, ela estava suspensa no ar. Uns setenta centímetros do chão, mas seria o suficiente. Um bicho-papão poderia passar por baixo dela e me espetar ou até mesmo me levar. Não tenho como me defender”.
Era apenas uma criança esquecida em uma rede atada em uma sala grande com todas as janelas abertas. Era uma presa fácil. “Se morresse, como seria minha cara de defunto”? Ficaria com os olhos entreabertos? Meu pai e minha mãe iriam chorar muito? Não! Eu não quero morrer. Albert não queria ser espetado nem levado. Era muito pequeno para morrer.
Apavorado e percorrendo os labirintos da mente em busca de salvação ouviu os cachorros latirem lá fora. Deu-se conta que a porta da frente de casa, que dava para a rua estava entreaberta. “
“Que descuido! Como alguém pode esquecer a porta aberta? Não foi esquecimento. Foi à providência de Deus para que eu fosse punido, castigado. Para que fosse levado pelo bicho-papão”.
Mergulhado nas profundezas do medo, quase entrando em pânico, Albert sentiu a rede ser empurrada de baixo para cima por alguém ou alguma coisa. Tentou gritar por socorro e não conseguiu. Perdeu a voz. Tentou balbuciar “mamãe” não conseguiu. Ficou mudo de tanto medo. A rede balançou e voltou para o lugar. As costas de Albert foram empurradas tocando também nas do bicho que passou embaixo. Ele tentou assumir o controle da situação. Escutou mais latidos de cachorros lá fora, na rua.
“Foi o Feroz”! É isso! Foi ele, foi o nosso cachorro. Só pode ter sido ele que passou por baixo da minha rede me tocando”.
Essa possibilidade foi enchendo Albert de alívio, apesar do suor gelado no corpo inteiro. Aos poucos, mesmo sussurrando, consegui falar baixinho “mamãe”. Quando sentiu que a voz e as pernas voltaram sussurrou suavemente:
“Pai Nosso que estais nos céus, santificado seja o teu nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como nos céus, o pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai os nossos pecados, assim como perdoamos a quem nos tem ofendido, pois teu é o reino, o poder e a glória para todo o sempre amém. Jesus eu prometo que não vou mais querer ver uma mulher ganhar neném, nem a vizinha tomar banho. Também não falo mais palavrão”.
Foi uma madrugada de tormento esperando que a alma de um índio ou algum combatente da revolução viesse buscá-lo. Afinal de contas a casa tinha sido construída em cima do velho cemitério. Exausto de lutar no campo de batalha de sua mente, Albert adormeceu…
Acordou com o sol da manhã iluminando toda a casa. Abriu os olhos. Estava vivo. Não foi dessa vez que os demônios o levaram. Que sol maravilhoso! Que vida, que alegria! Albert suspirou de prazer de viver. Sentiu a leve brisa da manhã lhe acariciar os cabelos. A cidade estava molhada. Tinha vencido uma grande batalha naquela noite. O medo de viver e depois ter que morrer sem razão nenhuma, sem sentido algum lhe roubava toda a alegria por isso era melancólico.
Porém, o pior estava por vir na vida de Albert…teria que enfrentar novas batalhas por toda a vida. A morte dos pais quando ele tinha 33 anos calou todo medo do seu coração. Com o tempo compreendeu o sentido da vida, principalmente que o amor está muito além da eternidade. A morte é pouco, mais ou nada diante da vida. Como dizia sua mãe:
“Albert, meu filho, não há o que temer. Estarei sempre com você. No seu coração e na sua mente. Muitas vezes você vai tropeçar e cair. Seja bom e perdoe. O importante é levantar e continuar a caminhar até o fim do caminho que estarei lhe esperando”.
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