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2021 termina sem avanço no combate à violência sexual contra indígenas

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O ano de 2021 se encerrou sem qualquer contribuição combativa à violência étnica e de gênero em relação às mulheres indígenas. A Segunda Marcha Nacional de Mulheres Indígenas, ocorrida no início de setembro, escancarou “um cenário de intensificação de violências contra os povos indígenas especificamente contra as mulheres indígenas”1.


Afora os projetos de lei2 que tratam sobre matérias relevantes contrárias aos direitos indígenas, as mulheres e meninas inseridas nesse contexto são impactadas com múltiplos atos de violência, incluindo abuso sexual e estupro.


Duas barbáries chamaram atenção no ano de 2021.


A primeira delas ocorreu no Rio Grande do Sul: a morte da jovem Daiane Griá Sales (14 anos), que morava na Terra Indígena do Guarita, da etnia Kaiangang, cujo corpo foi encontrado em 4 de agosto, quatro dias após seu desaparecimento, em uma lavoura na Posse Ferraz, município de Redentora. A adolescente foi asfixiada e teve parte do corpo dilacerado por animais em decorrência do abandono. Segundo a conclusão do inquérito policial, o acusado ofereceu ajuda a Daiane na madrugada e o exame de sangue realizado no corpo da vítima constatou elevado índice de nível alcoólico, demonstrando o estado de vulnerabilidade de Daiane3.


Ao longo das investigações, dois suspeitos tiveram prisão preventiva decretada, um de 21 e outro de 33 anos. Dadas as condições em que o corpo de Daiane foi encontrado, concluiu-se pela existência de crimes contra a vida e à dignidade sexual, em razão de questões de sexo, gênero e raça, muito bem delimitadas a partir dos indícios colhidos. Houve grave violação aos direitos fundamentais de modo geral, especialmente aos direitos dos indígenas, transgredindo-se frontalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)4.


Poucos dias depois, em 9 de agosto, Raíssa da Silva Cabreira (11 anos), da etnia Kaiowá, morreu após sofrer estupro coletivo e ser jogada viva de um penhasco localizado na pedreira da aldeia Bororó, no município de Dourados (MS)5. A vítima foi estuprada por cinco pessoas, sendo três adolescentes e dois homens (um deles seu tio).


O Ministério Público denunciou os adultos acusados de terem cometido dois crimes conexos: além do crime de homicídio duplamente qualificado, lhes foram atribuídos os delitos de estupro de vulnerável e de corrupção de menores. O órgão acusatório requereu a extinção da punibilidade do delito cometido pelo tio da menina, em virtude de ter sido encontrado morto por enforcamento na Penitenciária Estadual de Dourados. O outro homem, de 20 anos, segue custodiado preventivamente à disposição da Justiça. Os demais três adolescentes foram denunciados por atos infracionais análogos ao crime de homicídio duplamente qualificado (pelo emprego de meio cruel, recurso que impossibilitou a defesa da vítima e feminicídio) e estão internados provisoriamente na Unidade de Internação Masculina, em Dourados6.


Nesse caso, havia proximidade entre a vítima e seus abusadores, especialmente aquele identificado como seu tio. Contudo, essa é uma situação que não difere das demais. Na maioria dos casos de crimes sexuais praticados contra menores, o abusador é alguém que se insere no contexto familiar ou social da vítima, que se vê intimidada em razão da posição de poder ocupada por esse agressor.


De acordo com o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020”, em 84,1% dos casos o autor era conhecido da vítima, o que “sugere um grave contexto de violência intrafamiliar, no qual crianças e adolescentes são vitimados por familiares ou pessoas de confiança da família, muitas vezes por pessoas com quem tinham algum vínculo de confiança”7. Assim, o vulnerável, completamente desamparado e sem qualquer respaldo de seus familiares para se socorrer, acaba tendo maiores dificuldades diante dessa violência, ocasionando retardo na cessação dos abusos.


Segundo informações dispostas pelo derradeiro censo, realizado em 2010, o Brasil conta com o número de 896.917 pessoas que se autodeclaram indígenas, entre as quais 57,7% vivem em terras indígenas oficialmente reconhecidas8.


Nesse contexto, os crimes sexuais contra índias e índios vulneráveis, em expressiva maioria (80%), são praticados por entes da família ou por pessoas próximas à vítima. Com base em dados do ano de 2020, o “Relatório Sobre Violência Contra Povos Indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (CMI), revelou situações verídicas nas quais crianças e adolescentes indígenas sofreram violência sexual dentro de suas respectivas comunidades. Como exemplo disso, citou-se o caso de uma jovem integrante do povo Jaminawá que era abusada recorrentemente pelo próprio pai quando este encontrava-se sob efeito de bebida alcoólica9.


A violência sexual contra crianças e adolescentes, além de representar uma problemática que deságua em questões de direitos humanos fundamentais e saúde pública, se enquadra nos crimes tipificados entre os artigos 217-A a 218-C do Código Penal, a depender do caso concreto.


O §5º do artigo 217-A dispõe que as penas previstas no caput e nos §§1º, 3º e 4º do dispositivo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime, “visando afastar a impossibilidade de invocar o consentimento do ofendido como fator de atipicidade da conduta” 10.


Nessa linha, a Súmula 593 do STJ dispõe: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente” 11.


Entre os precedentes da referida súmula12, identificou-se fundamentação relevante: “A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados”.


Embora haja esse direcionamento protetivo, no julgamento do AgRg no Recurso Especial 1.919.722-SP, o STJ deu preponderância ao contexto fático para absolver o réu: dois jovens namorados, cujo relacionamento foi aprovado pelos pais da vítima, sobrevindo um filho e a efetiva constituição de núcleo familiar13. Considerou-se que o jovem de 20 anos não oferecia risco à sociedade e, portanto, não poderia ser submetido ao cumprimento de uma pena de 14 anos de reclusão, com risco de se proceder uma completa subversão do Direito Penal, em afronta aos princípios fundamentais basilares e ao princípio da dignidade da pessoa humana.


Portanto, nota-se que toda interpretação legislativa caminha passo a passo com a evolução social, buscando efetiva proteção do vulnerável contra traumas físicos e psíquicos.


O enfrentamento dessa desafiadora realidade se faz ainda mais penoso quando implicado no espectro das comunidades indígenas brasileiras. Isso porque, mormente após o início da pandemia da Covid-19, houve uma redução no número de denúncias relativas a casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, em especial nas comunidades indígenas14.


No âmbito dos delitos sexuais praticados contra vulneráveis, a pena máxima que o tipo penal pode alcançar é de 30 anos (artigo 217-A, §4º) e há possibilidade de perda ou de suspensão do poder familiar, conforme dispõe o artigo 155 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esses parâmetros legislativos também se aplicam às comunidades indígenas brasileiras, pois, em que pese a conservação dos costumes e instituições próprias conferida aos integrantes de tribos indígenas, o sistema jurídico brasileiro e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos impõem certas limitações, motivo pelo qual é vedada a prática de crimes sexuais por qualquer que seja a motivação.


O Tribunal de Justiça do Estado do Acre, em caso de estupro entre indígenas, assentou entendimento no sentido de que o denunciado não poderia invocar sua condição de indígena para livrar-se da responsabilização criminal. A decisão foi motivada à luz da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, lei 4.657/42, que preconiza a aplicação dos costumes exclusivamente em caso de omissão da lei (artigo 4º), a despeito de reiteradas alegações da defesa de que os atos praticados pelo réu eram reflexos das suas tradições culturais15.


No caso, como vítima e denunciado são indígenas, vieram à tona tradições culturais, como a de relacionamentos precoces a partir dos dez anos de idade. Na dosimetria, o juízo reconheceu elementos da continuidade delitiva, bem como que as circunstâncias eram negativas, pois o réu se valera da vulnerabilidade da menor, aproveitando-se da sua relação de confiança e parentesco, tendo facilidade de acesso, controle, submissão, dificultando a descoberta do ilícito reiteradamente praticado.


A condição de vulnerabilidade é inconteste, não apenas pela parca idade ou pela falta de percepção da realidade, como também pela incapacidade de serem tutelados e protegidos de rostos que lhes são tão familiares.


Em relação às questões de âmbito processual, somam-se às regras previstas no Código de Processo Penal aquelas contidas no Estatuto do Índio. A diferença primordial de tratamento consta do artigo 56 da lei 6.001/73, ao preconizar, com natureza de princípio, que nos casos de condenação de índio por cometimento de infração penal, a pena a ser aplicada deverá ser atenuada, observando-se, na oportunidade da sua aplicação, o grau de interação do silvícola à sociedade16.


Por outro lado, há registro sobre a prática de crimes sexuais contra vulneráveis indígenas não apenas dentro do seio familiar, como também por indivíduos de outras etnias que adentram às comunidades ou, até mesmo, convivem com as vítimas fora daquele contexto.


Assim, com o escopo de resguardar o vulnerável que é vítima, ou que tenha testemunhado qualquer ordem de violência que seja, a par da legislação específica aplicável (ECA), o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 299, de 05/11/19, que dispõe sobre o sistema de direitos da criança e do adolescente, aplicável, inclusive, no contexto das comunidades indígenas.


A resolução busca respaldar crianças e adolescentes acerca de seus direitos, conferindo garantias de segurança e adequação do procedimento e do trâmite processual. No caso particular dos silvícolas, essa assistência adentra à questão da comunicação e garante intérprete a fim de viabilizar a troca de informações que porventura possa estar prejudicada (artigo 18, §2º).


Ademais, sempre que a demanda versar sobre direito da criança ou do adolescente indígena, o órgão federal responsável pela política indigenista será convocado para acompanhar a colheita de depoimento, assim como para acompanhar e participar os atos processuais (artigo 21)17.


Não obstante a existência de regras legislativas claras e pertinentes, na maioria das vezes, crianças indígenas se veem desprotegidas do aparato jurídico-social. A ausência de políticas públicas efetivas, somada à existência de uma cultura velada e permissiva de violência sexual contra crianças e adolescentes no contexto das comunidades indígenas, faz transbordar um cenário de desamparo e esquecimento que urge ser enfrentado.


Cecília Mello – Criminalista e sócia do Cecilia Mello Advogados.


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